Quem

Quem?
29/11/2014 00:00:00

Ele entra em meu consultório reclamando da vida… que não tinha sorte no amor, que tinha poucos amigos, que sua vida social era escassa, que não via mais graça em seu trabalho. Sua voz era empastelada, mecânica, era uma pessoa de semblante e expressão melancólica, “O Cavaleiro da Triste Figura” nas entrelinhas de Cervantes. Sofria da sorte, do azar, era um portador de normalidade crônica em estágio agudo… caso grave de difícil tratamento.

Tais tipos são previsíveis ao extremo, chegam sempre pontualmente no horário, estressam com facilidade quando algo sai fora do lugar, odeiam imprevistos, têm hábitos e perpetuam a rotina, não se animam por qualquer bobagem, trocam lazer por trabalho, em raros momentos fazem algo diferente na vida. De temperamento estável, evidenciam personalidade controladora ao extremo, com pouca ou rara criatividade com forte tendência ao comodismo. Tem cura?

O padrão da normalidade prescrito em vários roteiros e rótulos na era pós moderna tem esta contra indicação. Kant em crise.  Pobre do ser que for adequado à normalidade. Será condenado à chatice, à alienação, ao isolamento pela massificação. Terá inúmeros problemas de convívio social afetivo no trabalho. Será mais um sem graça no meio da multidão. Talvez se adéque ao cargo de burocrata, a um cargo comissionado, um endividado sem desejo e sem destino. O excesso de racionalismo impregna a existência, e justificativas ocorrem para tudo e isto vira comodismo. Lamentavelmente há muitos de tal monta por aí. Sérios candidatos a viverem com intensa ansiedade, à depressão, ao alcoolismo, ou a um enfarto ou derrame aos 50 anos. Certa vez uma paciente me disse que não se suportava mais…”não aguento mais fazer tudo do mesmo jeito, da mesma forma”. “Todo dia ela faz tudo sempre igual me sacode as seis horas da manhã” dizia a letra  de Chico Buarque. O tédio parodiava a letra da música à vida da paciente: sobrava estresse e faltava alegria no existir e a consequência era crise de vida, de casamento, de identidade.

Na vida é importante que tenhamos hábitos e costumes, certa rotina e organização. Porém o excesso, a rigidez, a falta de criatividade, a ausência de rupturas no regime da vida tornam qualquer pessoa um chato, um ser insuportável. E ninguém faz história comportado, ao contrário. Os seres normais têm como sobrenome o tédio e as crises existenciais por falta de personalidade.

Hoje em dia lamentavelmente existem os que preconizam este sonho da vidinha do mesmo de sempre, para transformar a sua história em algo previsível como um roteiro de comercial de sucesso. Você toleraria ficar ao lado de alguém assim?