O Montanhista

Um amigo está escalando o Everest. Carlos Morey, que conheci quando estava me preparando para a caminhada ao Campo Base da maior montanha do mundo, levou a sério um plano ambicioso: escalar cada uma das montanhas mais altas de cada continente. E só falta o Everest.

Quem nunca foi para a montanha dificilmente entende o que alguém vai fazer lá. Uma coisa que as pessoas sempre me perguntam é se me tornei mais “espiritual”, se algo mudou no meu jeito de ver a vida em função da viagem. Se encontrei Deus.
Explico que não fui para lá com esse objetivo. Deus ou Maomé ou Buda ou Jeová ou qualquer outra referência religiosa ou de valores são coisas pessoais, que têm as mesmas raízes e um só fundamento: o respeito ao semelhante.
Caminhando na trilha do Everest mergulhei em mim e estive muito próximo de um estado religioso. Ao contemplar a natureza selvagem também. Ao observar a energia das pessoas que vivem numa região inóspita e miserável, com alegria e gentileza inigualáveis, idem.

Lembro-me da história de um alto executivo que trabalhava na costa Oeste dos EUA. Um dia, recebeu um convite para transferir-se para outra empresa, em Nova Iorque, a cerca de 4.500 de quilômetros de distância. Quem o convidou passou a seguinte instrução:

– Venha para cá conversar. Mas você deve vir de trem. Numa cabine só sua. Sem livros, TV, rádio, revistas ou jornais.

O executivo estranhou, mas atendeu. Durante horas permaneceu sozinho com seus pensamentos. Nada para distrair a atenção. Apenas refletindo. No trem, teve muito tempo para raciocinar a respeito e entendeu a instrução “absurda” de seu amigo. Foram aquelas horas de concentração que lhe permitiram avaliar profundamente a proposta, as conseqüências e os riscos. Quando chegou a NY, já tinha tomado a decisão que mudaria sua vida: aceitou a proposta.

Sabe aquela parada que a gente dá para um cafezinho? Aquele momento mágico em que relaxamos e que, muitas vezes, é o momento em que surgem as idéias, a inspiração? O Everest foi meu cafezão.
Eram horas de caminhada diária. Concentração nos passos, na respiração. Um ritmo que me colocava num estado mental muito próximo da meditação. Usei aquele tempo para pensar na vida. Questionar a razão de suportar coisas que me desagradavam. Imaginar que eu seria capaz de realizar coisas que achava impossíveis…

A trilha do Everest me deu inclusive a resposta para uma questão que me agoniava. Durante pelo menos oito anos, morei num extremo da cidade de São Paulo e trabalhei noutro. Eram quase 90 quilômetros entre ida e volta, que me tomavam por dia cerca de três horas, num trânsito infernal. Por muito tempo questionei o absurdo de jogar fora três horas diárias de alguns dos anos mais produtivos de minha vida.
Na trilha do Everest percebi que aquela rotina diária no trânsito não era improdutiva. Aquelas eram horas preciosas de reflexão, de criação. Muito do que realizei nasceu dos momentos em que me vi só, no trânsito, quase em estado de meditação. Imagino que essa seja a recompensa dos que vão para o Caminho de Santiago. Dos navegadores solitários. Dos montanhistas. Dos corredores. Dos esportistas de alto desempenho.

Reflexão.

Foi isso que a trilha do Everest me proporcionou. O bastante para mudar minha vida. Por isso vou pras montanhas.

A aventura do Carlos Morey está sendo acompanhada no blog www.omeueverest.com.br/blog . Se você tiver tempo, passe por lá e deixe uma mensagem pra ele.