Luciano Mais um LíderCast, já virou padrão, então eu vou contar como é que a figura apareceu aqui. Mandou um e-mail para mim dizendo o seguinte: eu tenho uma puta história para contar. Eu não sei quem é, nunca vi na minha vida, eu sei que ele já palestrou no Epicentro, mas eu não estava lá, eu não vi, não tenho a menor ideia. Esse é daqueles que eu gosto e mandou um e-mail com tanto ardor, tanto tesão que eu falei bom, vem cá vamos conversar, então o bicho chegou aqui agora, nós vamos fazer a nossa rodada de papo aqui. Você já conhece o LíderCast, são as três perguntas iniciais, fundamentais, eu quero saber…
Rafael E são as mais difíceis mesmo…
Luciano … exatamente, seu nome, sua idade e o que é que você faz?
Rafael Meu nome é Rafael Rodrigues, eu tenho 34 anos e até pouco tempo atrás eu pensava que eu era designer gráfico e apenas designer gráfico, mas aí com tudo o que aconteceu na minha vida nos últimos anos eu descobri que eu sou uma espécie de dublê, então eu sou dublê de palestrante, dublê de escritor, dublê de fotógrafo, dublê de roteirista, de vendedor de livro e de projeto humanitário e por aí vai, então eu estou fatiado nessas áreas aí.
Luciano É o pato que anda, voa e nada, mais ou menos?
Rafael É um ornitorrinco com muito mais coisas.
Luciano Você nasceu aonde?
Rafael Eu nasci em Barueri.
Luciano Nasceu em Barueri de que lado? Do lado do povão ou do lado da elite?
Rafael Do lado do povão.
Luciano Lado do povão.
Rafael Do lado de cá do rio. Não é do lado de lá não. Nasci em Barueri, mas fiquei pouco tempo, depois eu mudei para Itapevi, morei muitos anos na COHAB de Itapevi e por aí foi, depois fui para Carapicuíba, então eu morei numa área meio barra pesada no começo da vida.
Luciano Seu pai e sua mãe faziam ou fazem o que?
Rafael O meu pai, ele era desenhista projetista da FEPASA, que era a antiga CPTM, então lá nos princípios, quando tinha poucas linhas de trem, ele desenhava peças lá e minha mãe, ela era dona de casa, depois ela se tornou enfermeira, auxiliar de enfermagem, então foi mais ou menos nesse ambiente aí que eu…
Luciano E o garotinho morando lá “nas COAHB” queria ser o quê quando crescesse?
Rafael Então, a primeira coisa que eu fiz foi começar a desenhar justamente para imitar o meu pai, então meu pai tinha vários livros técnicos em casa, então eu ficava copiando peça técnica, eu não sabia o que era, mas eu copiava e um dia ele falou para mim pô, você desenha bem e tal, me levou no trabalho e o chefe dele me deu um compasso até de presente, falou ó, você desenha bem, segue. Então a primeira coisa que eu queria ser mesmo, que eu pensei que eu seria, seria desenhista…
Luciano Teve contato com nanquim, com as canetinhas…
Rafael Sim… meu pai trouxe suas canetas em casa, falou ó, muito cuidado que as pontas são delicadíssimas e no primeiro desenho que eu fui tentar fazer eu bati, já entortou…
Luciano O que eu usei isso, meu Deus do céu, minha origem também foi essa. Mas e aí? Vou ser desenhista, vou seguir a linha do meu pai.
Rafael É, mas aí o que aconteceu, até quando eu tinha uns 9, 10 anos, minha vida foi bem legal assim, o que aconteceu foi que meu pai, com esse sonho de ser empreendedor e de não trabalhar mais falou meu, não vou mais…
Luciano Não trabalhar mais para alguém.
Rafael … é, não trabalhar mais para empresa…
Luciano Você tem irmãos?
Rafael Não, tenho duas irmãs. E aí ele decidiu que ele iria ser empresário e abriu um bar, falou não, eu achei um bar em Campinas, não sei de onde ele tirou isso e se associou com o cunhado, com um amigo e falou assim, vamos pegar toda a família e vamos para lá porque é um bar restaurante e vai dar para sustentar a família. Então, do dia para a noite pediu demissão de um cargo público que ele tinha, fez minha mãe, minha mãe já trabalhava no hospital, fez ela sair e o vizinho também saiu da empresa, que trabalhava em Alphaville, a mulher e o outro e vai todo mundo, isso na teoria daria muito certo, o problema é que meu pai tinha problema com alcoolismo, então ele já…
Luciano Nós estamos falando em 1995 aí?
Rafael … sim, é 94, 95, que eu lembro da morte do Ayrton Senna e tal, e então assim, ele já… meu pai teve uma infância muito complicado, então a gente até entende essa dependência do álcool que ele tinha, mas uma coisa é você estar trabalhando e tomar uma cana ali no final do dia, outra coisa é você ter a cana ali do seu lado, 24 horas por dia, então não demorou muito para ele começar a ir ladeira abaixo, porque ele vendia uma dose e tomava duas…
Luciano Ainda mais dono do bar.
Rafael … e aí a coisa… foi muito rápido esse processo, eu me lembro que a gente foi para Campinas, não demorou dois anos até a coisa realmente desmoronar, desmoronar no sentido que ele vivia bêbado, a convivência com a minha mãe ficou insustentável no sentido de que ele… ele agrediu minha mãe uma ou outra vez, mas não era constante.
Luciano Que idade você tinha?
Rafael Eu tinha 10 anos, 10, 11 anos.
Luciano Suas irmãs tinham quanto?
Rafael A irmã mais velha tinha 14 para 15 e minha irmã mais nova era um ano mais nova do que eu, então ela tinha seus 9 anos.
Luciano Puta, que terror.
Rafael Aí eu lembro que um dia a coisa ficou tão grave que minha mãe esperou ele ir par ao bar e falou ó, eu decidi, estou indo embora para a casa de um tio e vocês tem aí quinze minutos para pegar tudo o que vocês tem, que a gente está indo embora pra lá, ele está vindo com uma Kombi, então não pega muita coisa porque é isso. Aí eu lembro que eu olhei para um quarto grande que eu tinha, falei puta, peguei um vídeo game, um Mega Drive que eu tinha, uma outra roupa, coleção de figurinha e todo mundo para a Kombi e fomos embora e viemos parar aqui em Barueri de novo, então eu nasci…
Luciano Na casa de um tio.
Rafael … na verdade era casa de um tio, mas tinha sido a casa dos meus avós.
Luciano E largaram seu pai lá.
Rafael Largou meu pai lá.
Luciano Ele chegou em casa…
Rafael Ele narrou isso para mim depois de um tempo, ele chegou a casa estava mais ou menos vazia e ele, o que aconteceu? Meu pai ele era muito maluco beleza e eu lembro que contaram para mim que ele chegou no bar e ele mandou fazer uma placa, um cartaz preto escrito “luto”, preto, na frente do bar. Aí todo mundo entrava e falava que aconteceu? Ele falou estou de luto, minha mulher morreu. Minha família desapareceu, estou de luto. Ele tinha um discurso que ele falava assim, ele falava muito para a minha mãe: você não aguenta viver longe de mim, se você sair, eu não dou uma semana para você estar atrás de mim de novo, ele vivia repetindo isso, e foi justamente o inverso, uma semana depois que a gente já estava em outro lugar, ele foi atrás da minha mãe e aí tentou conversar, mas estava insustentável, minha mãe já estava aguentando aquilo há muito tempo, então o que aconteceu foi que, é que na época eu era muito criança para entender, mas hoje eu vejo, o cara já tinha problema com alcoolismo, está sozinho, aí é mais ladeira abaixo ainda, e aí ele não aguentou muito no trabalho porque não fazia nada, ele só tomava, aí os sócios se encheram dele e meio que… ele meio que abandonou o negócio e virou uma espécie da andarilho assim, não tinha onde viver, vivia um tempinho na casa de uma irmã, depois vivia no outro e aí minha mãe vendo isso tentou interná-lo em clínica de reabilitação, então chegou a internar ele umas três vezes, mas ele fugia. Eu lembro que ele me contava que as fugas dele eram espetaculares assim, então ele estava internado não sei onde, em outro estado e ele chegava na minha casa, sem documento, sem dinheiro, sem nada. Como é que você fez pai? Não porque eu rastejei por baixo do portão, depois fui para a estrada, peguei uma carona e estou aqui, então ele sempre voltava para a minha mãe, minha mãe ajudava ele por um tempo, ele viveu conosco por um tempo, depois minha mãe falava caça seu rumo, numa dessas de caçar rumo, ele achou um sítio para ser caseiro, em Caucaia do Alto, ali em Cotia…
Luciano Ele continuava bebendo?
Rafael … continuava, só que ele tentava esconder da gente, por exemplo, às vezes ele chegava todo cheio de hematomas assim, o que foi isso? Ah eu estava trabalhando de pedreiro e caí. Na verdade, ele já estava tomando por aí, ele caía e se machucava. Aí eu lembro que eu fui visitar ele nesse sítio, umas duas vezes e era uma casinha simples assim, sem janela, sem nada, só de tijolinho e ele falou para mim ó Rafa, aqui está a felicidade, para mim é felicidade. Eu lembro que ele pegou um pedaço de madeira e ele talhou na madeira “felicidade” e colocou em cima da porta, ele falou ó, aqui eu produzo minha comida, entre aspas, planto um alface, tem uma bica ali e tal e aqui eu vivo. Mas não durou meses, eu lembro que um dia eu estava na escola, a diretora chegou e falou pega o seu material, peguei, cheguei lá minha mãe estava na secretaria, falou ó, falaram que acharam seu pai morto lá na casa onde ele está e você visitou, você sabe onde é, eu nunca fui lá, então você tem que ir lá guiar mais ou menos a gente, a polícia para ver se é ele e se está morto mesmo. Eu tinha 14, 15 anos nessa época. Aí fui, guiei mais ou menos, achei o local, aí quando o policial falou, eu lembro que o policial falou, alguém precisa ir ver o corpo, aí minha mãe foi levantar, aí ela teve meio que um mal súbito assim, aí o policial falou, não vai a sua mãe não, vai você, aí nesse momento assim, a gente acha que a gente não fica com trauma nem nada, então daquele momento acho que na minha mente deu um pause assim, eu nem processei o que estava acontecendo, na verdade, então eu fui lá, entrei na casa, sabia que em algum lugar estaria o corpo, entrei na cozinha não estava, quando eu virei no quarto já estava, então ele estava lá caído mesmo e tinha um litro de cachaça do lado assim, no chão. Aí eu olhei assim por um segundo, vi que era ele mesmo, aí volteio para a polícia e falei ó, era ele mesmo, pode levar, e aí foi IML, foi tudo aquilo.
Luciano A cachaça matou ele.
Rafael Foi a cachaça. Então o que deu no laudo é que ele de tanto ele tomar, ele estava tendo umas crises de epilepsia também, então numa dessas acho que ele tomou, caiu e bateu a cabeça, mas o fígado dele já estava bem comprometido também, então se ele não morresse da pancada, ele morreria de cirrose em pouco tempo. Então a partir desse momento minha vida deu uma girada, ela já estava dando uma girada, porque como eu fui viver com a minha mãe e minha mãe não trabalhava na época, ela estava desempregada, meio que cada um foi caçar seu rumo, então primeiro trabalho que eu tive, eu tinha 11 anos, ia completar 12, era balconista de uma farmácia.
Luciano Como é que um garoto dos 10 aos 14 anos processa a figura paterna que nessa idade o pai é o super herói, o pai é o super herói e para você era a antítese, ou você tinha aquela coisa romântica da aventura, meu pai é um cara da aventura.
Rafael Meu pai era aquele aventureiro que nunca saiu de São Paulo assim sabe, então ele falava muita coisa, que ele tinha vontade de viajar, que ele tinha vontade de desbravar o mundo, como deveria ser legal fazer isso ou fazer aquilo e ele me falava com entusiasmo e eu gostava de ouvir aquelas histórias como se ele realmente fosse um maluco beleza assim sabe, que está aí, está tranquilo e quer viajar e tal, embora ele nunca tivesse viajado, então para mim ele era um herói sim, apesar de tudo isso, por exemplo, eu lembro que minha irmã era um pouquinho mais velha que eu e ela já tinha meio que coragem de peitar o meu pai, de chegar e falar pô meu, para de beber, você não vê o sofrimento que você está causando para a mãe e tal, eu não tinha coragem, então entre eu e ele era quase como se isso não existisse, era um bate papo ali tranquilo, a gente não tocava nesse assunto.
Luciano Ele deve ter morrido com uns quarenta e alguma coisa.
Rafael Morreu com 42.
Luciano 42 anos.
Rafael com 42.
Luciano Puta vida.
Rafael É. Então para mim foi como eu te falei, meio que eu nem processei isso assim na época, eu fui processar muitos anos depois, então meio que eu não tinha escolha, minha mãe falou a gente está aqui, morando de favor, num barraquinho de madeira assim, minha mãe não falou vai trabalhar, mas ela falava ó, o dinheiro é esse, quem quiser tal, aí eu arrumei esse trabalho de balconista de farmácia e aí eu comecei a trabalhar, com 11 anos.
Luciano Em Barueri.
Rafael Em Barueri.
Luciano Com que idade?
Rafael 11.
Luciano 11 anos? Caramba…
Rafael Eu ia fazer 12, eu lembro que…
Luciano Se você for trabalhar com 11 anos o dono da farmácia vai ser preso, os caras prendem o dono, prendem tua mãe, prendem todo mundo.
Rafael … e o dono da farmácia era muito louco e eu lembro que eu tinha que lavar uns talheres que ele comia e eu lembro que eu brincava com os talheres, assim a colher era tal coisa, o garfo era outra coisa, eu fui lembrar disso anos depois, falei eu estava brincando na verdade, eu nem processava que eu estava trabalhando.
Luciano Mas você tinha, com 11 anos, horário para chegar, horário para sair, tinha um salário num dia do mês.
Rafael Tinha. Eu lembro que ele chegou para mim e falou assim, quanto você quer receber? Aí eu…
Luciano Com 11 anos pô.
Rafael … porra…. é… aí eu falei assim, ai na minha cabeça o que eu criei, eu falei 135 reais, aí ele falou por quê? Aí eu falei ah, 50 vai ser para eu ajudar minha mãe a construir uma nova casa, 50 vai ser para o meu pai e 35 para mim. Essa foi a lógica que eu criei. Aí ele pensou e falou assim, tá eu vou te pagar 150. Então fica 50 para cada coisa que você quiser e 50 para você e aí eu ia fazer de tudo, etiquetava preço em remédio, limpava prateleira, varria o chão, só que era muito louco, porque eu acho assim, se Deus existir, Ele deve ter falado assim, esse cara vai para a terra e vai acontecer muita coisa estranha, muita coisa louca, por exemplo, ele era um senhor e ele era muito viciado em vinho, ele tomava muito e ele tocava a farmácia com a esposa, a Emília e ela tomava vodca, então era um casal de velhinhos que tomavam, só que um tomava escondido do outro, só que eu era responsável por comprar bebida para os dois…
Luciano O vinho e a vodca.
Rafael … então de manhã, que era a parte que ele ia, ele falava vai no mercado e compra dois litros de vinho, eu ia e comprava dois litros de vinho, ele tomava igual… eu lembro que eu olhava assim para o quartinho do fundo da farmácia, ele tomava igual água, então dava meio dia ele já estava alto assim e eu via ele vender medicamento com o preço que ele queria, assim, não leva, isso aqui…. eu lembro que tinha um pacote de algodão de bolinha que era 5 reais e a mulher foi e ele falou 50 centavos, aí a mulher nossa, 50 centavos? Ele falou é, inclusive Rafael você está etiquetando as coisas com preço errado, não é 5 reais, é 50 centavos, troca todos os valores, aí eu puta, eu ia lá, uma maquininha que imprimia as etiquetas, a tarde, aí ele ia dormir, porque tinha um quartinho atrás. Chegava a Emília. E a Emília falava para mim olha, ai chegar uns amigos do Francisco lá e eles gostam de tomar, compra uma vodca para a gente, aquela vodca Balalaika, Vaikal, alguma coisa assim, e aí eu ia e comprava, ela tomava, então eu acompanhava os dois, quando eles tomavam muito, no outro dia a farmácia não abria, eu lembro que ele falava assim, se até as 10 horas a gente não chegar, volta para casa.
Luciano O pai enchendo a cara não sei aonde, o teu patrão e a patroa enchendo a cara no trabalho, como é que você não virou um bêbado?
Rafael Então, você sabe que teve uma época da minha adolescência que eu me forcei a tomar assim, não, vou tomar que não sei quê, porque meu destino meio que já está pré determinado, esses papos, só que por algum motivo eu não gosto de tomar assim, então eu não gosto do sabor da bebida, então quando eu falo para as pessoas hoje que eu não bebo, mas é por que é religioso? Eu não digo nem que é por trauma do meu pai, mas pode até ser, não sei, mas eu não gosto do gosto mesmo, não gosto do gosto da cerveja, então eu acabei não tomando assim.
Luciano Mas vamos lá, você está trabalhando e aí? Aí mudou a perspectiva, o menino que ia ser desenhista resolveu…
Rafael Então, aí foi ser o que dava, então eu trabalhei nesse balcão de farmácia, aí depois…
Luciano Você estava estudando?
Rafael … estava estudando, eu lembro que minha mãe teve que ir na delegacia de ensino sacar uma permissão especial para eu poder estudar à noite, porque eu era muito pequenininho, aí a mulher falou não, ele não pode, porque só tem gente grande a noite e tal, mas ela foi lá e assinou então eu podia trabalhar na farmácia durante o dia e estudava à noite, durei um ano e pouco na farmácia e aí fui ser pedreiro, pintor, trabalhei num lava rápido, ali no Brooklin, eu lavava carro durante o dia, a noite eu limpava ali o vidro tal para ver se eu ganhava uma caixinha e tal. E eu fui trabalhando com o que aparecia assim e eu lembro que eu tinha alguns amigos que já começavam a ter uns trabalhos mais formais assim, numa empresa, alguma coisa eu lembro que eu ficava pensando assim, puta eu já comecei errado, assim, eu já comecei ferrado, meu destino já está traçado, então aí eu pensei é assim, então, que as coisas são, a gente já começa assim, não tem como se livrar e eu fui de bico em bico, trabalho em trabalho, até quando eu estava no segundo colegial, no colégio, chegou uma pessoa e falou assim, nós somos do governo, nós temos um programa que chama Jovem Cidadão, que é um programa de incentivo para os estudantes arrumarem o primeiro trabalho formal, o governo paga metade do salário e a empresa paga a outra metade, quem quer se inscrever? Ela foi passando a ficha para todo mundo se inscrever e chegou na minha vez, eu estava revoltadinho, rasguei a ficha assim, isso é do governo, é uma merda, não vou me inscrever, beleza. No ano seguinte eu vi que os meus amigos começaram a trabalhar, um começou numa empresa, outro começou em outra e aí eu pensei comigo, acho que eu fiz besteira, até que um dia ela chegou e falou, quem está inscrito no programa, tem uma vaga para ajudante geral, aí eu levantei a mão, como se eu tivesse inscrito, eu mais meia dúzia de amigos, fomos lá falar com ela para ela dar o endereço da empresa, quando chegou na minha vez eu falei ó, vou ser sincero com você, eu não estou inscrito no programa, eu não me inscrevi, era a Rosa, nunca esqueço, ela falou tudo bem, vou te dar uma oportunidade, vai para a empresa e faz a entrevista, se eles te aceitarem, corre e volta e se inscreve. Beleza. Aí eu cheguei nessa empresa e não era para ajudante geral, era para office-boy, eles tinham passado informação errado e foi a primeira vez que que entrei num escritório de empresa e eu vi aquele pessoal…
Luciano Onde isso?
Rafael … isso em Barueri.
Luciano Em Barueri.
Rafael É, ali no Jardim Regina Alice e aí eu vi aquele pessoal engravatado e tal, aí eu falei nossa, porra é isso, o trabalho formal é isso, eu lembro que eu vi um menino passar assim, ele tinha a minha idade, mas ele estava vestido impecável assim sabe, gravatinha e tal e eu todo maltrapilho, eu lembro que eu olhei assim, falei nossa, que diferença. Aí fiz todas as entrevistas, passei, quando eu passei me apresentaram para esse menino, ele era o Marcos, falaram você está substituindo ele, ele foi promovido, agora ele é auxiliar administrativo, então ele vai te ensinar o trabalho aí. Esse Marcos vai ser uma figura muito importante no final da história, por isso que eu estou citando ele. E aí ele me ensinou, eu lembro que no primeiro dia ele falou ó, é fundamental que a sua pastinha aqui, na época que existia office-boy, organiza aqui para o banco, presta muita atenção e tal, eu lembro que ele era um cara muito organizado, antes de sair ele fazia uma fichinha de todas as coisas que precisava fazer e colava fora da pasta e ele ia ticando no meio do caminho assim, então ele era ultra organizado e aí ele me ensinou, foi promovido eu fiquei por um tempo como office-boy e aí office-boy é aquela grande escola de escritório, puta você é metido para comprar não sei o quê, para ir em banco, para resolver problema, para não sei o quê e tal e você aprende muito assim.
Luciano E tem gente que torce o nariz, que não admite, é muito por baixo, é isso.
Rafael É assim, é uma pena que essa profissão já se extinguiu, porque ela deveria ser a escola de todo mundo, porque os caras te colocam ara resolver qualquer problema, ó daqui você tem que pagar essa conta em uma hora lá em São Paulo, se vira, vai, está aqui o dinheiro do ônibus e que ônibus, que tem que você tem que pegar, se vira…
Luciano Você tem que descobrir como é que faz, você vai lidar com pessoas…
Rafael Exatamente.
Luciano … você tem responsabilidade, você tem que entregar, você está andando com algum valor dentro…. tem que se cuidar, é um negócio…
Rafael … e você começa aí a aprender as coisas de relacionamento, porque ao mesmo tempo que você vai, tem alguém que pede pra pagar uma conta, paga essa conta para mim, é o cara do RH, você não pode…. é uma escola mesmo assim, acabou que eu fiquei essa empresa por uns quatro, cinco anos, office-boy, depois auxiliar administrativo, depois fiquei um tempo no faturamento, só que eu tinha essa veia de desenho, essa veia de criação e tal, então…
Luciano Continuava estudando?
Rafael … continuava estudando…
Luciano Trabalhando e estudando.
Rafael … aí eu terminei, sim, aí eu terminei o colégio e eu queria fazer faculdade, mas eu não tinha grana para fazer faculdade, então falei pô, nesse meio tempo vou fazer um curso técnico só para não ficar parado. Entrei no ITB lá em Barueri, que na época era um curso de processamento de dados, era um curo técnico de um ano e meio, aí entrei tal, aí surgiu uma oportunidade para o controle de qualidade.
Luciano Na mesma empresa?
Rafael Na mesma empresa, aí tal, para ser inspetor do controle de qualidade pra cuidar das normas ISO, aí ah legal fui, então eu cuidava da documentação ISO, preparava para auditoria interna e externa, tirava certificação, TF16949, que é a da automotiva, eu lembro até hoje, então a missão, valores, eu fiquei um tempo naquele ambiente, até que eu consegui através de uma outra ação do governo que chamava-se Escola da Família, que isso é uma outra coisa também, que é assim, o governo, ele pagava a sua universidade em troca disso você dava aula em fins de semana nas escolas públicas, aula do que seja, você desenvolvia o seu projeto e eu lembro eu apliquei para isso, eu lembro que assim, eu ganhava 500 reais e a universidade era 450, só que para aplicar para essa bolsa, você já deveria estar matriculado, então eu falei puta, vou arriscar, fui, arrisquei, entrei e logo no segundo ou terceiro mês saiu a bolsa, falou você vai…
Luciano Faculdade de quê?
Rafael … design gráfico.
Luciano Design, você foi fazer design.
Rafael Eu fui fazer design gráfico.
Luciano Aonde?
Rafael Ali em Osasco, era UNIBAN, depois virou Anhembi, hoje não sei como é que está. E aí ó, você vai dar aula na escola de Carapicuíba, ali perto da Cohab e tal, fim de semana, então era uma rotina assim que hoje eu olho aquilo e falo assim, puta não sei como eu fazia tudo aquilo.
Luciano Que idade você tinha, 18, 17?
Rafael Não, não porque eu fiz o técnico de um ano e meio, eu tinha 20, 21.
Luciano Como é que é? Aquele moleque que até então tinha sido meio jogado pra lá e prá cá, entra numa sala de aula para dar aula, para os moleques mais novos que ele.
Rafael Então, isso foi uma grande escola literalmente para mim assim, porque…. e aí poucas pessoas têm essa oportunidade e eu sou muito grato, porque futuramente depois eu fui dar aula em curso técnico em universidade, então ali eu tive a oportunidade de fazer um laboratório mesmo.
Luciano Outra escola. Outra escola para você.
Rafael Exato, então assim, você tem que montar o seu projeto, então ah, ok, tem criança, vocês querem ter aula de xadrez? Ok, vamos ensinar xadrez. Depois eventualmente a escola recebeu computadores, pô então vamos montar um curso de informática, então, mas aí adultos também se interessaram, então vamos montar uma turma de adulto e de criança, então ali foi realmente, eu consigo dar aula, montava o conteúdo programático e conseguia me expressar, eu não sabia que isso futuramente seria muito importante para mim.
Luciano É eu estou vendo um drive na tua vida aí que você está falando aí os insights que estão para mim aqui, o tempo todo tem que se vira aí por trás, se vira, e se você é o tipo do cara que espera acontecer não vai acontecer porcaria nenhuma.
Rafael Exato. E eu tinha… e aí tem uma coisa muito importante, cada trabalho desse que eu passava, que era bem trabalho de peão, sempre vinha um para mim e falava assim, você tem que estudar, você tem que estudar, estudo aqui muda a sua vida, tem que estudar, você quer ser peão? Tem que estudar. Então eu ficava com esse mantra na minha cabeça, tem que estudar, tem que estudar, quem estuda se dá bem e tal, então eu ia perseguindo isso do jeito que dava. Eu passei quatro anos nessa vida de universidade e dando aula fim de semana, então eu, literalmente, passei quatro anos sem fim de semana. Esse programa Escola da Família hoje, ele existe mas ele é mais flexível, porque depois entrou, eu esqueci o nome de um outro programa, que ele te dá bolsa sem você precisar prestar serviço e era muito forte assim, porque eu tinha que estar nas 9 às 5 na escola, sábado e domingo, eu tinha direito a duas folgas por semestre, se eu pegasse DP, reprovasse na universidade eu perdia a bolsa, então não tinha marem para ficar ali ah, então foi onde eu aprendi a ficar mais esperto, então eu sai daquela empresa que eu estava, de controle de qualidade e fui ser estagiário em design, procurar estágio na área e estava estagiando numa agência de marketing esportivo, então eu estagiava nessa agência, à noite eu ia para a universidade, sábado eu passava o dia inteiro na escola, aí eu tinha uma namoradinha na época, sábado a gente ia para a casa da namoradinha, domingo de manhã eu ia para a escola de novo…
Luciano Você conseguia tempo para namorar ainda?
Rafael … porra, pois é, hoje eu penso assim, nossa, como é que eu conseguia isso?
Luciano Deixa eu dar uma pausa aqui porque você tocou num tema aí que é interessante a gente trocar uma ideia aqui, essa coisa do mantra, do tem que estudar, nós estamos falando do começo dos anos 2000, alguma coisa assim não é? Que era um período interessante porque até então, até o começo dos anos 2000, 2003, 2004, alguma coisa assim, quando alguém falava você tem que estudar, só tinha um lugar para ir, que era na escola, você tem que estudar, eu vou para a escola, vou procurar um curso, vou para uma escola, etc. e tal, quando você olha para essa realidade hoje, em 2018, quando alguém fala para você assim, eu tenho que estudar, a escola é só uma opção, eu posso estudar na escola, eu posso fazer um curso, ou eu tenho um mundo na minha frente para estudar de qualquer forma, quer dizer, eu não estou indo atrás de um diploma ou de um certificado, eu estou indo atrás de conhecimento.
Rafael Exatamente.
Luciano E hoje em dia você tem um mundo inteiro para buscar, quer dizer, eu não preciso mais, eu aqui, 61 anos, sou um estudante, que escola você está? Nenhuma. Frequenta escola? Nenhuma. Não estou nada, mas eu estudo o dia inteirinho, por quê? O meu trabalho faz com que eu esteja permanentemente pesquisando, em contato e lendo etc. e tal, então eu considero que eu tenho um tempo da minha vida que é dedicado a estudar e vou fazer isso até morrer, até o último dia eu vou estar estudando.
Rafael Estudar é estilo de vida. As pessoas tem que tirar essa coisa da cabeça de que é uma obrigação e que existe prazo para terminar, nessa época eu tinha muito essa mentalidade que se eu chegar aqui, deu tudo certo.
Luciano Peguei o diploma, aí….
Rafael Deu tudo certo.
Luciano … e não é assim.
Rafael Porra, você vai ver o que aconteceu.
Luciano Vamos lá, conta.
Rafael Aí eu lembro que nessa época já começaram a falar no meu ouvido, não, você está estudado, mas você está trabalhando para outras pessoas, você tem que empreender, quem empreende na verdade é que tem sucesso na vida, aí eu caramba, estou fazendo errado…
Luciano Aparece teu pai na cabeça, olha o meu pai.
Rafael … é, então, aí começa a associação, pô, que não sei o quê, tem que empreender e aí eu lembro, porra teve um episódio muito marcante na minha vida que vale a pena muito ser citado, eu lembro que eu queria entrar em agência grande, agência de publicidade grande e naquela época, publicidade estava no topo, era aquela coisa glamurosa, puta o cara trabalha na McCann, o cara trabalha na África, o cara sabe, quem entrava nesses lugares era o super star assim e desses lugares eles só aceitavam gente de determinadas faculdades, tem aquele nicho meio fechado e eu não consegui, eu lembro que eu pagava, eu lembro que eu meti um salário inteiro meu para ouvir uma palestra do Washington Olivetto, para tentar falar com ele, para ver se eu conseguia mostrar um portfolio, não consegui, encontrei com ele no elevador, eu fui falar, um cara falou na minha frente, pô preciso de estágio e tal e eu caramba, mas eu era muito esperançoso que eu ia conseguir, até que eu estava estagiando nessa agência de marketing esportivo que era um pouquinho menor e eu abri o jornal e tinha assim, nova agência de tal, tal, tal publicitário e eu vi o endereço, era no mesmo prédio que eu trabalhava, ali na Vila Olímpia, era um andar abaixo, eu falei puta, então eu consigo descer e entrar e ver esses caras sem ser anunciado na portaria, puta é minha chance. Eu lembro que eu cheguei em casa e essa noite eu não dormi porque eu cheguei da universidade em casa e eu não dormi porque eu fiquei preparando o portfólio, então eu preparei minhas melhores peças e tal, fiz aquilo e aí no outro dia de manhã fui sem dormir, imprimi, coloquei numa pastinha, respirei fundo, eu lembro que eu estava tremendo, desci no elevador e cheguei na agência, a agência estava terminando de ser montada, aí entrei, a recepcionista meio que “quem é esse cara?”, ele não foi anunciado. Eu falei, por favor, o tal aí, ela quem é? Falei Rafael Rodrigues, como se fosse assim o cara, e o cara não deu para fugir porque eu vi que eles estavam no fundo, e ele tal, falou ó, Rafael. Ele falou tudo bem? Falei você não me conhece, mas eu sou grande fã do seu trabalho, acompanho e tal…
Luciano Quem era o cara?
Rafael … era Ricardo Chester, na época a agência era a Babel, uma agência que ele abriu, eu falei olha, sou muito fã e eu estou, na época eu estava no terceiro ano na universidade, segundo para o terceiro, e eu falei ó, eu quero uma oportunidade para trabalhar, você pode avaliar minha pasta? Aí ele falou…
Luciano Na cara dura.
Rafael … na cara dura…
Luciano Você foi na cara dura.
Rafael … você pode avaliar meu trabalho? Aí ele falou claro, deixa aí que eu avalio, amanhã a gente conversa. Beleza, aí voltei esperançoso, falei ah, consegui falar com o Ricardo Chester e tal. No outro dia ele me mandou um e-mail, falou ó Rafael, avaliei sua pasta, seus trabalhos e não estão bons, então agora não vai rolar, então você pode descer aqui e pegar sua pasta. Aí eu pensei puta, não posso perder essa chance, fiz os cálculos do dinheiro que eu tinha na minha conta e falei esse dinheiro dá para pagar a passagem e me alimentar por um ano e aí falei para ele, respondi o e-mail, tenho uma proposta para você, eu trabalho para você um ano de graça, você não precisa paga nada, eu vou pagar minha alimentação e meu transporte e aí depois de um ano você pode avaliar minha pasta de novo, se eu melhorei, você pode me contratar e não precisa me pagar retroativo. Se eu não melhorei você pode me dispensar, aí eu lembro que eu escrevi assim: agora eu te deixei numa situação complicada, o que você acha? Aí ele respondeu para mim assim: Rafael, igual a você eu recebo dez por dia aqui, querendo trabalhar de graça e mesmo a pasta deles está melhor que a sua. Então não vai rolar. Puta, ali foi…
Luciano Que idade você tinha?
Rafael Eu tinha 22, 23.
Luciano Com essa idade a gente é…. nós somos imbatíveis, nós somos super… a gente vai mudar o mundo, nós somos foda, ninguém pode comigo, eu sou foda, minha pasta é do cacete e vem um cara e esfrega na tua cara…
Rafael Mas você sabe que hoje pensando, Luciano, é claro que não é culpa dele, ninguém tem tempo para fazer isso, mas a avaliação não deveria ser feita assim, a avaliação deveria ser, eu penso assim porque eu tive outras experiências, a avaliação deveria ser mais abrangente, falar assim, ok cara, essa é a sua pasta, seus trabalhos não estão bons, mas você ficou a noite inteira acordado para fazer isso, você em final de semana você está estudando e tal, você fez o melhor com as ferramentas que você teve…
Luciano Tem gente que avalia assim, você deu o azar de pegar um cara que não avaliava assim. Deixa eu te contar uma passagem minha aqui, eu estava na universidade em São Paulo, moleque de vinte e pouquinhos anos e eu era o cartunista da turma, então eu fazia os meus cartoons, brincava de cartoon e a turma gostava tudo e a gente, por uma série de… eu fazia comunicação visual no Mackenzie, uma série de ações, nós fomos entrar em contato com om Zélio, o Zélio é o irmão do Ziraldo Alves Pinto, o Zélio é um puta artista plástico, é um cara que na época estava muito bem conceituado e tudo mais e a gente acabou tendo contato com ele, produzindo alguma coisa para ele, um belo dia nós fomos visitá-lo e eu levei a minha pastinha de cartoon, e eu me lembro da cena perfeitamente, eu com meus dois ou três amigos, os amigos naquela, putz, porque eu era o cartunista, o Zélio sentado na prancheta dele, eu do lado e eu entrego uma pastinha e ele tira para ver os cartoons e ele pega os cartoons, ele olha e joga… tira o cartoon e joga assim, vai jogando, ele vai olhando e vai jogando e jogando e os moleques olhando a cena deve ser…. é coisa de cinema, aqueles “puta olhão” arregalado, porque o cara, ele pegava e jogava assim e eu olhando aquilo e me sentindo um merda, terminou ele pegou e falou assim, sabe porque eu joguei isso tudo aqui? Eu falei não. Porque quando eu tinha a tua idade fizeram igual comigo, eu fui e o cara pegava e jogava também, isso não é nada contra você, mas eu entendi, tinha uma lição ali do tipo assim: moleque, baixa a bola que você é um merda, agora vamos conversar sobre seu trabalho e aí ele pegou o desenho e começava, tem uns negócios aqui que não estão legais, isso aqui não é bom, isso aqui é ruim e ele me deu umas dicas na hora e eu sai de lá com a faca nos dentes para encontrar o meu traço que é o grande lance do cartunista, o cartunista precisa ter um traço, tem que ter um negócio que você bate o olho e fala pô, esse cartoon é do Luciano. Não tem como, é o Luciano que fez isso aqui e eu não tinha o traço, eu tinha uma coisa qualquer que não era o traço.
Rafael Você fazia uma ou outra coisa ali, copiava os estilos.
Luciano Eu fui de cabeça e eu me lembro perfeitamente do dia que eu achei o traço, teve um dia que eu estava lá e de repente pá, fiz um desenho, é isso, eu tinha encontrado meu traço ali, mas veio daquela experiência que eu tive com um cara fazendo uma avaliação que se você olhar de fora hoje fala meu, que merda, como é que pode, puta sacanagem, jogar o trabalho do moleque assim? Mas eu entendi hoje, aquilo era uma lição do tipo moleque, baixa a bola aí que você não é nada, então está no teu lugar? Agora vamos conversar sobre teu trabalho, então foi uma brochada, eu lembro que nós saímos de lá os quatro… a orelha baixa, pô, murchinho, falei ele jogou meus trabalhos, só fui entender muito mais tarde é que era a pegada.
Rafael É eu até em compreendo o cara, imagina você um empresário abrindo agência e tal aí vem um moleque de 20 anos e ó, avalia aqui e tal, só que pelas experiências que eu tive, hoje eu consigo ter esse olhar um pouco mais humano, então está ok, tem cinco pastas aqui para eu avaliar, legal, avalio os trabalhos, mas o que está por trás desse trabalho? Qual é a sua rotina? Qual é a sua? Qual é a sua? Qual é a sua? Ah ok, então esse aqui não está melhor, mas dentro das ferramentas que ele teve, ele fez o melhor…
Luciano A atitude desse cara, esse cara está com a faca nos dentes, esse cara está com um brilho no olho, esse cara…
Rafael Exato, pô esse cara se comprometeu a trabalhar um ano de graça para mim sabe, então eu saí assim muito brochado de lá, falei putz, escolhi a área errada, aí sabe aquelas coisas e aí eu tinha um amigo de infância, que ele estava cursando publicidade e ele falou para mim, e se a gente abrir uma agência? Então manda esses caras pra lá e vamos abrir a nossa agência, porque a gente manja e tal. Eu falei, então vamos, vamos lá eu chego com meu computador, você chega com o seu, a gente aluga uma salinha aí, vamos nessa. Aí eu estava indo para o último ano da universidade, saí do trabalho e fui montar minha agência, todo pá…
Luciano Aonde era essa agência?
Rafael … em Barueri…
Luciano Em Barueri?
Rafael … em Barueri também, era uma salinha comercial e tal e a gente foi metendo as caras e vai, vai e a coisa foi crescendo, o negócio foi crescendo e tal, mudamos de sala, começamos a contratar estagiário, a coisa foi funcionando e aí na minha cabeça pô, está certo, então tem que empreender mesmo para a vida funcionar, para você ter sucesso, mas de alguma…
Luciano Imagino como é que vai acabar isso.
Rafael … de alguma maneira, Luciano, eu não saía do meu padrão de vida que eu estava, eu estava continuando com meu computadorzinho, pegando ônibus e tal e o meu sócio, vi que o padrão de vida do cara aumentava…
Luciano Você era o artista, e ele era o empresário…
Rafael … ele era o vendedor…
Luciano … vendedor, tá.
Rafael … e o meu barato era criar, então assim, ele chegava e falava assim, o briefing é esse, pá, sentava lá e discutia ideia e tal, fazia um painel com as ideias e briefing, apresentação, gostava de ir no cliente para apresentar a ideia da identidade visual, a campanha e parava aí e nem aí para a administração, eu lembro que ele chegava com as contas para mim, você pode conferir, eu falei somos sócios, você é meu amigo, eu não vou fazer o seu trabalho, está certo? Está certo, você fala que o faturamento é esse, é esse. Só que assim, depois de quatro anos que a agência estava funcionando, minha vida não estava ainda assim, financeiramente eu estava igual e eu percebi que para o lado de lá, para o lado dele a coisa estava bem melhor, tinha um Astra, tinha uma Mac e eu com um PCzinho, ai eu chamei um amigo meu que era aquele office-boy lá da outra empresa…
Luciano O Marcos.
Rafael … o Marcos e nessa época ele já estava em outra empresa, já estava um puta administrador, falei tem algo estranho aqui, ele falou você me permite fazer uma auditoria em off aí? Dependendo do resultado eu te falo. Aí ele ia à noite lá, eu lembro que meu outro sócio saía ele ia a noite, fez a auditoria, depois de dois meses ele falou você é um funcionário dessa agência, você é mais um funcionário. Está vendo o dinheiro aqui, aqui e aqui, e ele falou se você não acreditar em mim, eu vou te provar, ele falou eu vou falar que eu vou entrar como sócio e vou estipular o pro labore de vocês, que até então não tinha pro labore, assim o faturamento é esse, paga a conta, divide em dois, ele falou você vai ver que pelo pro labore ele não vai conseguir manter o estilo de vida dele, então você vai perceber que tem alguma coisa errada aí. Não deu outra, o primeiro mês, ele falou vou ser sócio de vocês, quero investir, o cara ô legal, que não sei o quê e tal, um mês e meio depois o cara ó, tenho eu ir porque não está funcionando, porque eu tenho outros planos e tal, aí foi uma das grandes decepções na minha vida que teve uma importância fundamental no que viria depois, porque ali foi como se todo o discurso construído, tudo o que me falaram a vida inteira, tudo o que me disseram, não funcionou, então assim, não é estudar, não é empreender, não é nem amizade, porque o cara era meu amigo de infância…
Luciano Não é ser honesto…
Rafael … não é ser honesto…
Luciano … não é ser esforçado…
Rafael … exato…
Luciano … não é ser respeitoso, não é só isso aí.
Rafael … não é estudar mais, não é, a vida não é uma equação pronta como falam, se você fizer isso mais isso o resultado vai ser esse, são variáveis.
Luciano Aí você descobriu que tem uma equação que é incontrolável, chamada ser humano, não é?
Rafael Exatamente.
Luciano Se não existisse, seria perfeito.
Rafael Aí foi uma puta decepção assim, aí eu briguei com o cara e tal e aí de uma hora para a outra eu estava com uma agência para administrar, então eu tinha que vender, criar…
Luciano Mas tinha equipe lá?
Rafael … tinha, ainda tinha, a equipe ainda estava, eu tinha uns quatro moleques lá.
Luciano Tinha gente contratada?
Rafael Sim.
Luciano Tinha gente contratada.
Rafael … e aí de uma hora para a outra falo ó…
Luciano Caiu no teu colo a administração também.
Rafael … caiu no meu colo a administração, a venda e a produção e aí eu com aquele ego de não, eu vou fazer a coisa acontecer, não vou entregar que por causa dele a agência funcionava e tal, topei o desafio de levar o negócio adiante, ah mas não durou um ano, eu nem vendia direito, nem administrava direito, não criava direito, aí um funcionário saiu, outro saiu, eu lembro que chegou uma época que eu fiquei sozinho no escritório, escritório grande, tinha três salas e eu não largava o osso, eu continuava rindo, pagando aluguel, sentado numa mesa, eu limpava, eu fazia tudo, mas é que eu não queria aceitar a derrota, meu, você perdeu, acabou. E aí…
Luciano Até porque, de onde você veio, aquilo era uma puta conquista, não é?
Rafael Exatamente, aquilo era o auge para mim, como é que você aceita que você está no auge mas você dançou, você não tem nada, aí quebrar financeiramente…
Luciano Você estava sozinho, tinha namorada? Tinha algum…
Rafael … minha namorada tinha me deixado tinha pouco tempo, estava no inferno astral, mesmo assim, eu lembro que meses antes, assim, meses antes de dar todo esse problema, eu tinha conseguido comprar meu primeiro carro, um Peugeot 206, mas naquela loucura, dá sei lá, 4 mil de entrada aí e parcela, que eu imaginava que o negócio duraria mais 20 anos e aí quebrou, aí o banco foi na minha casa pegar o carro, então assim, eu tenho algumas experiências na vida que eu acho que todo mundo tem que ter, primeiro quebrar financeiramente, você tem que quebrar um dia, não tem, mas quem passa por isso nunca mais é o mesmo, quebrar financeiramente… a morte, a morte também é uma experiência que realmente te transforma e quando o cara é corno, quando o cara é corno também ele deixa de ser superman, então assim, ser corno, quebrar financeiramente e a morte, são três experiências que é impossível você sair o mesmo.
Luciano Deixa eu explorar esse teu… o corno depois, mas vamos… deixa eu explorar com você essa coisa do quebrar financeiramente porque uma coisa é você quebrar financeiramente e ter atrás de você uma estrutura familiar, pô tem meu tio, meu pai, alguém me ajuda, dá um jeito, a gente se vira e sai, outra coisa é quebrar sozinho, não tenho a quem recorrer, que eu imagino que era a tua situação…
Rafael Sim, totalmente.
Luciano … quebrou sem ter a quem recorrer, nome sujo…
Rafael Porra, total.
Luciano … banco, você abaixo de zero, sem empresa, vou começar de novo, o que eu faço? Vou ser office-boy?
Rafael Então, aí eu peguei uma… aí eu peguei uma raiva do…
Luciano Mas espera um pouquinho, deixa eu só complementar aqui para você entender onde é que eu quero colocar, é muita porrada junta em sequência, você juntou aquilo tudo, bom, quebrei, sou um merda, tudo o que eu construí não deu certo, eu não tenho a quem recorrer, eu vou dar um tiro na cabeça, vou jogar no trilho do trem, vou pular no rio, vou me matar, vou me acabar ou eu vou sair daqui, vou fazer acontecer. Eu queria ouvir de você, sabe, como é que é chegar em casa, parar e botar a mão na cabeça e falar catso, o que eu faço? Tenho com quem conversar? Tem alguém para me dar uma luz? O que aconteceu? Como é que foi aquele momento?
Rafael Então, primeiro é o momento de que você tem que baixar a bola e engolir o orgulho, porque dos meus amigos eu lembro que eu era o único que tinha escritório, eu lembro que muitas vezes eu recebia meus amigos nos escritório, numa sexta a noite para comer pizza, então assim, pô o cara mal se formou já tem um escritório e tal, então a primeira coisa é baixa a bola, baixa o seu ego que você não é assim tão invencível como você pensa, depois eu já tinha passado … aquilo era uma situação dura, mas eu já tinha passado coisas mais duras, de trabalhar com 11 anos, a morte do meu pai, então… e eu sempre continuei, eu sempre continuei, apesar de tudo, eu sempre continuei, tem alternativa, vamos continuar. Só que dessa vez parecia que não tinha alternativa porque eu não queria voltar para o mercado, porque isso para mim era uma derrota, pô, você é empresário, não sei quê, agora vai voltar a trabalhar para os outros? Nessa época, eu esquecido e comentar, quando a agência começou a ir ruim, eu consegui dar aula no SENAC, de design e de Photoshop, então eu dividia meu tempo, então estava um pouquinho na agência, um pouquinho dando aula, então eu me equilibrava ali nas finanças, embora que a maioria do salário eu investia na agência para pagar conta. Eu cheguei numa decisão que eu falei assim não, a culpa disso é desse capitalismo aí, desse capitalismo brutal, grosseiro que vem engolindo todo mundo, te vendem um sonho que você consegue, que todo mundo consegue e tal, não consegue, isso é uma mentira, aí você começa a flertar, quando você começa a flertar com a esquerda, ai eu falei não o mundo não pode ser assim, esse individualismo, a gente tem que pensar na coletividade, a gente tem que pensar um no outro que não sei o quê e eu comecei a achar que a culpa era do capitalismo e do sistema financeiro.. Onde já se viu o banco vem na minha casa, toma o meu carro e ainda quer que eu pague o reboque, quer que eu pague o guincho e quer que eu pague não sei o quê, fiquei putíssimo com tudo assim, aí comecei a pensar, falei em algum lugar do mundo deve ter as pessoas que vivem fora desse sistema capitalista, porque não é possível que todo mundo aceite isso e entrei no parafuso, pensando não, tem que ir algum lugar do mundo que eu preciso sair, eu preciso sair desse ciclo aqui porque não dá e aí acabou naquelas noites que mudam a sua vida, eu já de madrugada, pesquisando a internet eu pensei assim, preciso viajar, preciso sair do Brasil, preciso ver outras coisas, como é que eu faço isso sem dinheiro, não tem um centavo, aí eu pensei, trabalho voluntário, se eu fizer um trabalho voluntário, eu consigo ir para outros lugares e sair desse mercado financeiro, eu quero trabalhar com pessoas, quero ajudar, porque eu sei como é a importância de ajudar e aí pesquisei na internet, trabalho voluntário, aí caiu lá, trabalho voluntário África, programa de dezoito meses, você vai para os EUA, aprende, falei nossa. Depois vai para a África e tal, entrei em contato, quero ser voluntário que não sei o quê, espero resposta.
Luciano Nenhum ganho.
Rafael Não, pelo contrário, quando me responderam, legal o custo do programa é 6 mil dólares, aí eu falei assim, aí eu lembro que eu respondi, desculpa, na minha cabeça eu pensei que para ser voluntário bastava boa vontade, mas tem que pagar 6 mil dólares, desculpa, não dá para mim. Eu sou designer, agora eu estou sendo freelance então minha renda oscila, eu lembro que a menina falou, pô, você é designer? A gente está precisando de um designer aqui na organização, a gente precisa reformular a identidade, logo, site, o que você acha de uma permuta? Você vem aqui, só que você vem um pouquinho antes do treinamento de voluntário começar, trabalha com a gente aqui na organização e tal e aí paga a sua bolsa com permuta, depois você começa o treinamento. Eu estava tão desesperado, Luciano, eu queria tanto sair daquilo, eu queria tanto alguma alternativa que eu aceitei, falei é isso aí, eu falei, mas o treinamento como é que é? Ela falou ah, o treinamento é simples, você vem aqui, a gente é uma comunidade alternativa, a gente produz a nossa própria comida, a gente tem tempo comum com todos, é gente do mundo inteiro vindo aqui e a gente trabalha para servir as pessoas mais carentes da África.
Luciano Como é o nome da entidade?
Rafael É, na época chamava IICD, depois mudou o nome para One World Center, aí eu nem quis saber muito detalhe assim de como era, o que fazia e não sei o quê, eu sei que do tempo que eu descobri a organização para eu decidir, foram dois, três meses, foi só o tempo de eu ali renovar meu passaporte e o Marcos office-boy pagou as passagens e eu lembro que eu falei assim para ele, estou encerrando toda a minha vida aqui, estou encerrando todas as minhas contas no banco, estou fazendo isso e eu vou embora com 50 dólares, que o ônibus de onde eu pegava o ônibus em Chicago até Michigan, que era a organização, era 45 e eu lembro que eu ia ficar com 5 dólares só para ter 5 dólares na carteira. E eu lembro que ele chegou para mim e falou assim, vai devagar, não é assim as coisas, deixa a empresa aberta pelo menos e uma conta para que você consiga. Eu não, não, quero encerrar tudo, estou fora do mundo capitalista, aí de tanto ele me encher o saco, ele me convenceu a manter a empresa e manter a conta da empresa, beleza e foi isso que depois, no futuro ia salvar a minha vida. Lá fui eu. Mochilinha, falei para a minha mãe estou indo embora, vou ficar um tempo nos EUA, depois vou embora para a África, não sei que país da África eu vou, eu não sei o que acontece, eu vou embora. E fui. Fui com 50 dólares.
Luciano Você morava lá com a sua mãe?
Rafael Eu morava lá com a minha mãe.
Luciano E suas irmãs?
Rafael Uma já tinha casado, saído e a outra estava lá ainda.
Luciano E para sustentar sua mãe? Como é que era?
Rafael Então, eu dividia as contas da casa com a minha mãe e com a minha irmã, minha mãe trabalhava e minha irmã também e eu lembro que alguns amigos meus falaram caramba, você vai deixar sua mãe sozinha? Falei eu preciso sair, eu preciso decolar porque eu sentia que eu não tinha decolado, sentia que eu tinha, no meio do caminho tinha falhado e foi uma atitude bem egoísta, em pouco tempo eu decidi sair e tchau, na verdade era um ato de desespero.
Luciano Vinte e?
Rafael 28 para 29.
Luciano Pô, já não é moleque.
Rafael É, já não era, porque depois que a agência faliu eu fiquei um tempão ainda sendo freelancer em casa, então teve uns anos de maturação. E fui. E aí começa a história de verdade.
Luciano Vamos lá.
Rafael Eu lembro que eu cheguei na organização e era um lugar lindo, Luciano, era em Michigan, então tem a região dos lagos, aquelas florestas e a escola, ela ficava no meio de uma floresta assim e eu lembro que eu cheguei, tinha aquele gramadão imenso assim, eu lembro que veio dois cachorros me receber assim, um pastor alemão, que era a Mila e uma outra assim correndo, então eu vi aquela cena assim, gramadinho, só dois cachorros vindo, uma horta, um lago, falei nossa…
Luciano Só faltou trilha sonora.
Rafael … eu lembro que eu pensei assim, se existir céu é assim, o céu é isso, eu lembro que eles me receberam muito bem, seja bem vindo, faz parte da escola, me mostraram as coisas…
Luciano E o inglês?
Rafael … inglês eu já sabia, eu tinha aprendido sozinho nesse tempo de loucura de estudo aí, tinha até uma revista que chamava Speak Up, que e vinha com um cdzinho e aí eu pá, Speak Up no disck man, então eu sabia mas não sabia muito, conseguia me virar, aí eu fui entrando para aquela escola e aí tem algumas coisas que eu preciso explicar para que vocês entendam realmente o universo ali, eles eram uma comunidade alternativa, então como que funcionava? Eles produziam a maior parte da comida, então nós tínhamos um garden lá, uma horta, com melancia, cenoura, batata, alface, um monte de coisa. A administração da escola tinha alguns professores e tal, mas na teoria deles era que todo mundo fazia tudo, era uma coletividade e todos tinham a sua área de responsabilidade, então por exemplo, primeiro eu comecei trabalhando ali na promotion, na promoção, então eu refiz o logo, fiz um flyer, site, foto, fui bem tapa ali na comunicação e eu não participava realmente do dia a dia das pessoas que estavam em treinamento para ir para a África, eu acompanhava mais ou menos assim, então só para você entender a estrutura, era assim o treinamento são seis meses nos EUA, aprendendo tudo e tal como funciona a organização, depois seis meses em um país da África trabalhando, depois você volta para os EUA, mais seis meses para treinar os novos que estão indo, então são dezoito meses ao todo. O que acontece? Então você começa o time, eles chamam time, a cada três meses tem um time começando e o time é composto por pessoas do mundo inteiro, então tem gente da Coréia, do Japão, do México, do Brasil, EUA, Colômbia, enfim, a escola chega e fala assim legal, vocês são esse time, daqui seis meses vocês vão para a África, vocês são responsáveis por administrar a escola, estar junto com as outras turmas, então alguém vai ser responsável pela comida, por cozinhar, ou por organizar a cozinha, outro vai ser responsável pela manutenção do prédio, o outro pelos carros, outro por arrecadação de fundos, outro por atividades, então cada um ganha a sua área de responsabilidade.. Então, por exemplo, a menina da comida, ela organizava a horta e o que faltava ela comprava no supermercado e fazia a organização de quem cozinhava, quem devia cozinhar, todo mundo cozinhava para todo mundo, tinha uma escala e tal, o cara que era responsável pelos carros via a manutenção, troca de óleo, enfim, então quando você chega a teoria é linda, puta, todo mundo trabalhando pelo bem comum, tudo igual e aí nós tínhamos um schedule, tinha uma agenda para seguir, então 7 da manhã começava o dia com uma palestra, com estudo de alguma coisa, depois tomava café, depois cada um ia limpar a escola, a parte que cabia, cada um ia fazer a sua responsabilidade, fazer umas tarefas que tinha num servidor online para fazer, depois quem tinha que cozinhar, cozinhava, enfim, passava o dia, 5 da tarde eles diziam que era o sport time, todo mundo tinha que parar e fazer uma hora de atividade física, seja nadar, seja correr, pedalar, correr na floresta, fazer academia, enfim, e depois volta à noite, tem uma outra atividade, um filme, alguma coisa e acabou o dia. Então você chega assim e fala porra, que legal, estão pensando na sua mente, no seu corpo e tal, então o que acontece? Parte do treinamento que não tinha ficado muito claro para mim, era a arrecadação de fundos, fund drive, então a escola chega para o time e fala assim olha, cada um de vocês tem que arrecadar seis mil dólares em doações, para apoiar os projetos da África. Tá. Vocês tem seis meses para fazer isso, porém vocês tem um objetivo em comum, ou seja, não é porque você fez seis mil dólares que você vai para a África e eu não vou, ou todo mundo vai, ou ninguém vai, então nós tínhamos lá, eu acho que eram onze, não lembro, dez, nós tínhamos um objetivo de 72 mil dólares, então eles colocavam esse coisa em grupo, em comum, todo mundo tem que fazer, todo mundo tem que ajudar, então como é que eles faziam? Olha, eles davam dinheiro da alimentação diária, que era U$1,50, para a gente sair para a rua para encontrar a doação…
Luciano 1,50?
Rafael … 1,50. Só que eles falavam, 1,50 sozinho não é nada, mas se juntar todo mundo do grupo, dá para comprar a comida e cozinhar, a verdade é que a escola, ela é uma escola comunista, então… só que eles não dizem isso, eles vão te inserindo nessa filosofia comunista pouco a pouco, você não se dá conta do que está acontecendo, é 1,50 você, mas se juntar todo mundo, dá mais, vocês cozinham, então o que eles faziam? Nos seis meses que você tem de treinamento, não são seis meses pedindo dinheiro, vocês tem só dois ou dois e meio, os outros você tem que fazer atividades na escola, fazer as tarefas e tal. A gente entrega esse 1,50 por dia de cada um pelos dois meses de uma vez, dava lá, sei lá, 2500 dólares ou algo assim, está aqui, vocês tem que converter esses 2500 dólares em 72 mil, como vocês vão fazer isso é com o grupo. Se quiser ir para Las Vegas apostar 2500 e achar que vai voltar com 72, é com vocês, a escola tinha alguns carros, pega o carro e vai. O que a gente aconselha é que vocês liguem para supermercados e restaurantes, de preferência latino, mexicano e peça permissão para ficar na frente do supermercado com uma caixinha de doação pedindo doação, é a melhor maneira e a maneira que funciona e tem funcionado pelos últimos 20 anos, aí o que acontece? Aí começa… ah e para se hospedar nas cidades que a gente vai, a gente usava o calt surfing, que é uma rede social de viajantes que se hospedam e pessoas que querem hospedar viajantes de graça, então a gente escolheu, ah a gente vai para Chicago, buscava primeiro um lugar para ficar, alguém nos recebia, dividia o grupo em três carros, cada um ligava para os seus restaurantes, encontrava e basicamente era você ia para o restaurante, ficava lá em pé com uma caixinha, donation, e vai passando a pessoa e você… as crianças da África… o primeiro dia que eu, supostamente fui fazer isso, que eu deveria pedir, eu não aguentei assim porque era uma vergonha imensa, era na minha vida inteira ficava passando na minha cabeça, cara, você estudou, você fez tudo isso, para vim ficar pedindo dinheiro nos EUA? E pedir dinheiro na rua, todo mundo deveria passar por isso, não por seis meses e não por tudo isso de dinheiro, mas é uma sensação, eu era dessas pessoas que eu nem olhava para quem pedia coisa para mim na rua, eu nem olhava, ou vai entregar um panfleto, eu nem olhava e eu senti isso, de você tentar falar com alguém e a pessoa passar assim e você é um fantasma e eu não tinha coragem de pedir, eu lembro que eu tinha uma meta e para terminar a coisa, eu era responsável pela arrecadação das áreas, então eu sabia que eu tinha uma meta por dia dividido nos dias, então tinha uma meta lá de 80 a 100 dólares por dia e se eu não cumprisse a meta naquele dia, ficava mais para o outro, eu lembro que no primeiro dia eu fiz dois dólares, porque foi um cara, eu lembro do cara que passou, ele olhou para mim e falou, ele deve ter pensado assim, esse cara está muito ferrado, olha o cara, me deu dois dólares. Eu não conseguia olhar para a cara das pessoas e aí que entra esse meu amigo colombiano, Cetulio, que ele estava no meu time, ele estava num restaurante próximo do meu, algumas quadras, nós estávamos em Memphis e aí ele chegou caminhando assim e eu falei cara, não, eu não vou para a África, deixa quieto, eu não consigo pedir dinheiro, não consigo e ele eu também não. E aí ficamos uma semana em Memphis, então era assim, cada grupo tinha uma motorista que de manhã deixava todo mundo nos supermercados e ia para o seu e pedia, no final do dia, e era o dia inteiro, eram 12 horas, aí cada um com sua marmitinha da comida que a gente cozinhava na casa das pessoas, daqueles 10 e pouco dólares que a escola dava, voltava, recolhia tudo…
Luciano Esse era o treinamento?
Rafael … é, aí é que está o treinamento, isso é uma parte do treinamento, no final do dia todo mundo virava as caixas, contava o dinheiro, ó eu fiz tanto, e eu não conseguia, fiz dois dólares, meu amigo tinha feito vinte e aí eu falei não, não vai dar. Aí voltamos para a escola, nessa de voltar para a escola uma noite eu vi esse meu amigo Cetúlio tocando violão, é um bom guitarrista de blues assim e aí eu pensei, pô, tocar é melhor que pedir, só que eu não toco…
Luciano Você está agregando algum valor. Você está oferecendo algum valor para a pessoa.
Rafael Eu falei eu não toco, mas sou brasileiro, batucar, é, vamos lá. Aí eu cheguei nele e falei assim, que você acha de a gente montar uma dupla e tocar em bares e restaurantes aí em vez de pedir na rua? Ele já tinha tido banda em Bogotá, ele falou acho legal, falei você toca e canta? Ele falou sim, ele falou e você, eu falei eu percussão, mentira, aí ele pô, legal, o que você toca? Carron. Carron peruano que eu imaginei que era mais simples, são dois tons, aí ele falou beleza, vamos. Vamos. Acontece que eu fazia uns freelas, de lá dos EUA eu fazia uns freelas, então de vez em quando caia um dinheirinho, aí eu fui numa loja e comprei um carron, pagei 120 dólares eu lembro, e comprei um DVD, tocando carron fácil, coloquei o DVD e era um jamaicano ensinando, consegui acompanhar, montamos um set list de músicas latinas e ok, fomos para uma cidade, Peoria, em Illinois, uma família nos recebeu, a gente chegou lá com instrumento, vocês o quê? A gente toca pedindo doação para ir para a África, a mulher que legal, eu tenho uma amiga que tem um restaurante aqui na cidade, espera aí, deixa eu ver se eles tem um espaço para vocês, americano é todo… pegou o telefone, ligou e falou, ó gente, tem espaço essa noite, Burger Bar, era o nome do restaurante, pô que legal, qual é o nome da banda? Eu olhei para ele, não tinha nem pensado o nome da banda e naquele inglês macarrônico, Playing for África, nós somos o Playing for África, que nasceu em dez segundos, ela ótimo, legal, vocês tem um espaço aí, sábado oito da noite lá no Burger Bar, pô, beleza, aí eu, como designer, criei o logo, criei uma fan page no Facebook, somos a Playing for África e estamos em turnê nos EUA. Eu lembro que eu gostava de publicar isso no Facebook assim, United States Tour, que petulância, o cara nem é músico, mas tem uma turnê pelos EUA. Aí fomos no bar, eu fui, nervosíssimo assim e abrimos lá a caixinha, começamos a tocar, tocamos 40 minutos, deu trezentos e poucos dólares de doação, aí eu falei pô, isso funciona, nos EUA eles têm uma cultura de doação maior que no Brasil, então se você esperar que você vai tocar num bar em São Paulo e vai ganhar 300 reais, impossível, e só de gorjeta, aí eu falei para ele funcionou, legal, vamos seguir nessa? Então vamos seguir nessa. Então a gente tocava à noite e durante o dia, quando dava, a gente pedia, só que eu pedia com um pouquinho mais de tranquilidade que eu sabia que se eu não fizesse dinheiro durante o dia, eu podia tocar a noite. Então essa tarefa de pedir dinheiro foi ficando um pouquinho mais leve, só que aí, Luciano, tem o fator humano que é o que você citou da equação lá, que a gente nunca leva em consideração, como eu era responsável pela arrecadação de fundos, eu tinha que gerenciar quanto cada um estava arrecadando, certo? Então chegava no fim do dia, legal, caixas, todo mundo… então esse fez 100, aquele fez 80, esse aqui fez 5, aí eu.. o que aconteceu? Ah o restaurante que eu estou não está legal, falei legal, então vamos trocar, você vai para lá e ela vai para cá, trocava no outro dia, a pessoa que estava no lugar dele 80 e ele 5 de novo no outro. Ai eu…
Luciano Não era mais o restaurante.
Rafael … tem alguma coisa errada aí. Aí o que acontece, Luciano? Imagina um big brother da vida real, as pessoas estão lá, estão longe da família, estão ali, elas começam a entrar, fazer grupinhos, e você começa a perceber que a divisão, quando a gente dividiu o grupo sabe, vão tais pessoas para essa cidade e tal, um grupo fala não, mas eu quero ir com ele, eu quero ir com ela, começa a formar micro grupos, que você não divide, esses micro grupos vão se fragmentando dentro da escola, vão virando turminhas e você vê que tem um grupinho que não arrecada nada, lembra que o objetivo é comum, ou seja, a gente tem que arrecadar 72, não é 6 para cada, então não adianta eu fazer o meu se você não fizer o seu, você começa a perceber que o dinheiro não entra, todo mundo arrecadando 100, 150, eu tocando e tal, ia entrando 10, entrando 20 ali, aí você começa… só que assim, a maioria latino e você sabe como é latino, aí você começa a perceber a pessoa que chegou lá, não tinha dinheiro para nada, com aquele discurso que não sei o quê, tá com iPhone, aí você vê a outra que não sei o que, com uma botona, sei lá quantos dólares, aí você fala assim, acho que tem alguém roubando aqui, acho que as pessoas estão roubando doações, só que você não pode falar isso, você não tem nem prova, só que ao mesmo tempo o tempo está correndo e a escola não se mete nisso, ela fica só observando, ela só quer saber, chegaram da ação, sim, quanto? Legal, deposita na conta da escola, segue aí, só que isso é estratégia que você vai aprender depois, aí você vê que as pessoas vão não confiando mais uma na outra, vai ficando aquele climinha de meu, eles não estão arrecadando, você vai tentar dividir o grupo, o grupo não divide, você vai criando aquela coisa estranha. Tem uma coisa que eu esqueci de citar muito importante: a escola, ela tem uma política, tem várias, mas a mais importante é zero drogas e zero álcool. Quem tomar está expulso do programa, quem fumar, quem fizer qualquer coisa está expulso do programa. Meu time começou em novembro, quando chegou dezembro, festas, como eles são de mentalidade comunista e que não pode apoiar o capitalismo nem nada, eles não comemoram natal, nem ano novo, nem nada, eles vivem ali naquela comunidadezinha, cada um fechado no seu quarto, aí você imagina 20 jovens no mundo inteiro, longe da família, aquele frio, aquela neve, alguém teve a ideia, e se a gente se trancar no quarto e dar uma festança aqui? Bebida e tal, mas ninguém conta para ninguém, legal, vamos, vamos naquela empolgação, juntou todo mundo num dos quartos lá, que você vivia na escola e aquela farra, aquela farra, você imagina. Passou… e a regra era: entra no quarto, todo mundo dentro, fecha ninguém sai, porque se não o professor poderia entrar, que a gente vivia tudo no mesmo prédio. Ok Beleza. Agora continua o time, continua a arrecadação e aí chega uma hora que fica insustentável, você está fazendo dinheiro o outro não está fazendo e começa aquela briga, aí o objetivo de…
Luciano Só uma pergunta: esse grupo não tinha um líder? Não tinha uma liderança?
Rafael Tinha uma liderança de um professor, que é praticamente nula, que era assim, e aí, o que vocês estão fazendo? Estamos fazendo isso, isso e isso, é o melhor caminho?
Luciano Se existia uma liderança dos estudantes era natural, era aquela da ascendência sobre os demais e tá.
Rafael … e a escola tinha, uma vez por semana a reunião da comunidade, que teoricamente todo mundo se reunia de manhã e você podia falar abertamente sobre o que você não gostava na escola, certo? Essas reuniões eram intermináveis, porque você podia ficar…
Luciano Sim, eu…
Rafael … era assim, era até não terminar…
Luciano Assembleia, é uma assembleia.
Rafael … é uma assembleia, ah meu chuveiro está frio, ah mas ninguém paga, tem que consertar o chuveiro, ah não estou gostando da comida e aí vai, enfim, no começo você acha que você pode falar que tudo vai ser resolvido, com o tempo você vai percebendo que nem tudo você pode mudar, eles deixam você discutir dentro de um intervalinho ali, mas não exatamente você tem essa liberdade para mudar, só que você não percebe isso na hora. Fora tudo isso tem as tarefas, então você tem que ir num servidor e completar as tarefas e a tarefa é ler o livro do Che Guevara, examina o documentário sobre Cuba, é tudo muito tendencioso assim, e se você respondia, então você lia um texto e respondia, se a sua resposta não estava de acordo com o que eles diziam, te reprovavam, aí vinha um professor e falava essa questão está errada. Não, mas eu não acho isso. Não, não, faz de novo. Aí você faz. Não, está errado ainda. Não, mas eu não acho que o capitalismo está errado, que o plano e livre mercado… Até te vencer, ok, o livre mercado é mau para não sei o quê…
Luciano Doutrinação na veia.
Rafael … é uma doutrinação ali oculta que você não vai percebendo que você está sendo doutrinado e é aí que entra o terror da coisa, porque você começa a brigar por dinheiro com as outras pessoas de arrecadação porque você está fazendo seu dinheiro e a outra pessoa não está fazendo o dela, você começa a obedecer várias regras dentro da comunidade, você começa a responder tarefas sobre o capitalismo e o comunismo, tem que responder o que eles querem que você responda. Sem querer, você deixa de falar com a sua família assim, você vai sabe, ah faço um Skype ali, mas não deu para fazer essa semana, não deu para fazer a outra, aí você vai percebendo que você está se fechando dentro de um universo paralelo, onde as coisas funcionam daquele jeito. Por exemplo, um dos princípios lá é o tempo comum, ou seja, nós temos a economia comum, a comida comum, mas o tempo comum, significa que o seu tempo é o meu tempo, então se eu quero dormir três da tarde, tirar um cochilo a tarde, não, porque eu vou dormir se você está trabalhando? É injusto. Ao mesmo tempo você não pode sair num domingo, num sábado, ah eu vou sair para não sei onde. Mas por que você vai sair sendo que tem coisa para fazer aqui?
Luciano Os caras estão eliminando a individualidade completamente.
Rafael Exatamente.
Luciano Coletividade na veia.
Rafael Coletividade… Por exemplo, se você quiser sair num domingo, para ir para a praia, para um lago, você tinha que levantar a mão e falar: domingo eu quero sair. Você vai para onde? Para tal lugar. Que hora que você sai? Que hora você volta? Quem quer ir com ele? E aí as pessoas que queriam ir com você junto no carro falavam ou não. Se você queria sair, ah um amigo meu está aqui em Nova York, eu queria visitá-lo, você tinha que passar por votação da comunidade para saber se você podia ir ou não. Então essa é a essência da coisa que as pessoas não pensam nessa camada, entendeu? As pessoas pensam que ah, vamos compartilhar, é legal que não sei o quê, mas quando você compartilha tudo, inclusive o seu tempo, que você não é dono do seu…
Luciano A liberdade foi para a cucuia, você custou a tua liberdade, então essa conversa linda, maravilhosa de que todos iguais, a igualdade, a liberdade vai para a cucuia, o indivíduo dançou.
Rafael E aí o que acontece, Luciano? Acontece outra coisa, porque assim, as pessoas vão se tornando ou muito amigas ou muito inimigas dentro daquele ambiente, se detestam completamente ou se amam, a pessoa da comida que vai fazer a comida, está pouco se ferrando com todo mundo e faz aquela comida… e outra, não pode colocar açúcar, não pode… tem todas as regras naturais deles lá, então você tem que comer aquilo que está sendo cozinhado só que você não quer, você está… então às vezes você quer comer no McDonald’s, quer tomar uma Coca Cola, só que isso não pode porque isso apoia o capitalismo e isso é proibido na escola, então você começa a perceber um tráfico de fast-food oculto entre as pessoas, isso era muito engraçado, eu esperava anoitecer, todo mundo ali, eu pegava o carro, saia com as luzes apagadas e ia para o McDonald’s da cidade, comia um lanche, trazia para quem quisesse, ali contrabandeava um lanche e na hora de jogar fora, você tinha que jogar as coisas escondido, que se não via no lixo que tinha um pacote lá de batata frita. Vocês estão comendo comida de fora, como é que é, então chega num ponto que você fala eu não tenho liberdade para comer um lanche.
Luciano É um microcosmo de uma sociedade socialista.
Rafael É uma sociedade socialista dentro dos EUA, que é o mais impressionante de tudo. Você vai ser doutrinado a um ponto que você esquece tudo, você quer bater a meta de arrecadação, você quer arrecadar o dinheiro e ir para a África, não importa sabe, eu sei que aconteceu no meio do caminho foi que um grupinho lá não estava arrecadando o dinheiro que deveria e ficou insustentável, juntou todo mundo na mesa e aí foi que deu a explosão, você está roubando, você não está, você não está arrecadando, você tem dinheiro, você não tem, você está comprando, aí vira aquela briga e a escola, esse tempo todo a escola não se mete, ela fica só observando. Eu lembro que a diretora chegou para mim, uma dinamarquesa, falou assim para mim, me dá a lista de faturamento por pessoa, de arrecadação por pessoa e eu tinha tudo isso no Excel, no final do dia ela fez uma reunião com todo mundo e falou ó, estou vendo que vocês não conseguem trabalhar junto, vocês não conseguem arrecadar dinheiro e tem algumas pessoas aqui que estão sendo peso morto e são essas tres últimas, por faturamento e eram as três que estavam causando lá e eu acho que vocês tem que sair, vocês estão fora do programa. Só que a decisão não é minha, como isso é uma comunidade, a decisão fica para o grupo, então cada um vai votar se a pessoa deve continuar no programa ou deve sair. É o big brother, só que assim, votar, em vez da sala secreta, você está ali na cara…
Luciano Na cara, sim, na cara do sujeito.
Rafael … então era a hora de você chegar e falar na cara da pessoa, olha, você sabe que você não está colaborando com o grupo, você não esta arrecadando, eu estou 12 horas na neve pedindo dinheiro e você não, eu acho que você deve ir para a casa. E vai um por um votando. A maioria decidiu excluir essas três pessoas. Vocês três estão fora. Aí a diretora, legal, vocês três estão fora, pode ir embora, faz suas malas e tal, só que isso já era uma estratégia pensada, porque a diretora deixou eles fazerem as malas e tal e falou assim olha, eu vou dar uma última oportunidade para vocês, escrevam uma carta dizendo porque vocês devem ficar e deixa na minha mesa, não quero nem falar com vocês, deixa na minha mesa, talvez eu dê uma segunda oportunidade para vocês. Hoje a gente sabe, percebe que tudo era planejado, porque a escola sabe que eventualmente todo mundo vai tomar, ou vai fumar, vai fazer alguma coisa, essas três pessoas escreveram na carta: “olha, eu acho que eu devo ficar porque no natal e ano novo teve uma festa, essa e essa pessoa tomaram e se todo mundo quebrou a regra, porque só eu tenho que ir embora? E aí voltou a assembleia geral e falou, a diretora falou, eu pensava que eram só os três que ….
Luciano Seu vizinho entregando, eu ouvi o vizinho, foi lá na autoridade e entregou você porque você está indo contra o sistema etc. e tal.
Rafael Só que foi uma coisa bem teatral, foi um tribunal, é um tribunal, olha me disseram que mais pessoas quebraram as regras, então a gente vai ficar aqui até que vocês decidam o que vão fazer e aí ninguém falava, ninguém se entregava, todo mundo em silêncio. A gente tem a noite toda, a gente vai ficar aqui a noite toda, porque essa é a nossa comunidade, essa é a nossa casa, vocês vieram aqui vocês sabiam das regras e quebraram as regras. Vocês não são dignos de trabalhar na África e ajudar as pessoas e aí fica aquela pressão e eu pensando assim comigo, se ninguém se entregar, fica a palavra deles contra a nossa e está tudo bem, só que a pressão é tanta, Luciano, e aí talvez fique um pouco difícil para os ouvintes entenderem, ah pô, era só uma reuniãozinha, não, você está lá há seis meses pedindo dinheiro, longe da sua família, num ambiente que não é seu, comendo comida que não… sabe, você está tão emocionalmente abalado que não é uma simples reunião, e aí eu lembro que uma menina coreana começou a chorar, ela começou a chorar e eu falei puta, caiu a primeira peça, vai cair todo mundo e ela assumiu, eu tomei, eu bebi. Ah aí deu dois minutos a outra também falou, eu lembro que eu pensei assim, que eu falei, eu só escrevi no celular para esse meu amigo colombiano, o Cetulio, escrevi assim: não seja o último, porque…. e aí eu lembro que logo depois eu falei e logo ele também falou e todo mundo se entregou. E aí a escola falou ok, então está todo mundo fora. O dinheiro que foi arrecadado foi, está todo mundo fora, a não ser que vocês entrem num acordo com todo mundo aí e aprendam a trabalhar junto e deu uma nova solução, vocês tem meia hora para conversar e saíram da sala. Aí imagina você com dez pessoas que você falou na cara da pessoa vai embora que você está roubando e tal, agora você tem que entrar num acordo com essas pessoas, atrás disso tem uma estratégia, Luciano, eles não vão mandar ninguém embora enquanto a pessoa ainda pode fazer dinheiro arrecadando, eles vão manter.
Luciano Eles estão te desestruturando psicologicamente, eles estão eliminando a tua individualidade, estão tirando a tua liberdade e vão fazer com que você passe a ser polícia um do outro e ninguém mais confia em ninguém, a primeira chance vão puxar teu tapete e você sabe disso, não pode dar moleza.
Rafael Exatamente. Só que tem um detalhe importante aí, não estava só meu time nessa festa, tinha um outro time que tinha começado antes da gente, então eles estavam três meses adiantado, então era o nosso terceiro mês, só que era o sexto mês deles, eles estavam… já tinham cumprido a meta, já tinham arrecadado tudo, era só para ir para a África, a diretora chegou e falou ok, vocês entraram num acordo? A gente ok, a gente vai trabalhar junto, não sei o quê, eu lembro que eu tive uma estratégia que foi mudar todo mundo de lugar, a gente tinha mesas separadas, quando ela voltou estava cada um sentado numa mesa diferente. Ela falou o que é que foi? Eu falei aqui a gente mudou de lugar para provar que a gente vai ser capaz de trabalhar com outra pessoa do nosso lado que não é nossa amiga. Ela falou ok. Só que ela chamou duas pessoas do outro time, falou vocês estavam participando da festa? Sim. Então vocês estão fora e cortou a cabeça dessas duas pessoas. Eu lembro que era uma japonesa e uma coreana.
Luciano Sacrificou dois.
Rafael E eu lembro que as meninas ficaram desesperadas…
Luciano Ás vésperas de embarcar.
Rafael … dois dias, Luciano, antes de embarcar, imagina você ficou na rua, você pediu dinheiro, já tinha tomado vacina, já tinha tirado visto. Cortou as cabeças das meninas, falou vocês não vão para a África.
Luciano Sacrifico na frente de todo mundo para provar que estou falando muito sério e que se você não se comportar, às vésperas da tua viagem você vai dançar também.
Rafael Exatamente, então é uma estratégia genial, porque todo mundo ficou assustado, um novo time estava para começar, porque o outro estava indo embora, então o outro time começa, está todo mundo na linha, está naquele lugar perfeito, que foi o que eu encontrei quando eu cheguei, aí você fala a estratégia se repete e aí foi, entrou o outro time a gente estava assim, todo mundo obedecendo as regras, todo mundo fazendo tudo e tal e o outro time chega empolgado e você sabe que está para acontecer de novo, eles vão ter festa de novo, eles vão fazer isso de novo. O que aconteceu? Aos trancos e barrancos a gente teve que aprender a trabalhar junto e nós arrecadamos os 72 mil dólares e com medo de ir ou não ir nos últimos minutos, cortaram a cabeça de um cara do nosso time como prova para o outro e fomos. Aí cada dupla ou trio escolhe um lugar para ir, os países que eles tem projetos, eu decidi ir para o Malawi, o outro grupo foi para Moçambique, o outro foi para Zâmbia e aí vai. E aí o pesadelo parece que tinha sido nos EUA, mas na verdade o pesadelo ia começar quando a gente chegou lá…
Luciano Caceta cara.
Rafael … é, o pior ainda estava por vir, porque você chega cheio de energia, pô você cumpriu o seu sonho e você vai trabalhar, você quer trabalhar, vamos lá e você começa, primeiro, fica aqui, essa é a sua casa, você vai ficar aqui no meio de uma aldeia lá e aí legal, você vai trabalhando com o pessoal, aí você começa a perceber que você vai barrando na burocracia, vamos lá conhecer o projeto, espera hoje não dá porque não sei o quê. Não, eu quero conhecer todo o projeto. Está aí todas as folhas, um monte de documentos, fotos, relatório. Mas e o projeto? E o projeto? Até aí você vai forçando. Aí com o tempo você vai percebendo que não tem projeto, é tudo uma burocracia, o projeto que tem são duas, três pessoinhas que receberam uma camiseta, uma plantaçãozinha e o projeto? Nem o dinheiro que eu arrecadei? Porra só o meu time foi 72, daqui três meses estão vindo outros, aí você começa a perceber os selos de apoio no projeto, aí você vê lá UK Age, US Age, todos patrocinados pelos governos, mas se estão patrocinados pelo governo para que eu preciso arrecadar dinheiro? Aí você vê instrutoras monstruosas assim, mas você não vê nada funcionando, você quer ir par ao campo ver, não tem, aí você começa… você fica desesperado, você fala o que está acontecendo aqui? Aí foi quando eu conheci um líder comunitário lá, chamado Tony…
Luciano Um africano?
Rafael … um africano do Malawi e ele chegou para mim e falou ó, você quer a real? A real é essa, isso acontece sempre, as pessoas vêm aqui para tirar uma foto com uma criança, com não sei o quê e tal, entra na burocracia, finge que está fazendo alguma coisa, mas o resultado não sei, se sai, sai muita migalha, muito pouco.
Luciano Você lembra do US For África, maravilhoso, um baita de um evento fantástico, foi histórico, quando completou 25 anos daquele projeto, eles lançaram um DVD de comemoração aos 25 anos, eu corri comprar o DVD, porque eu fui muito impactado por aquilo tudo e o DVD mostra detalhes da gravação, é muito legal o DVD e nos extras do DVD tem dois documentários que mostram além do bastidor, o que aconteceu depois, o Harry Belafonte e eu não me lembro quem é o outro, resolvem ir par a África para seguir o dinheiro que eles arrecadaram, venderam milhões e era para matar a fome na África e eles vão para a África e seguem o caminho e o documentário vai junto com eles, então eles embarcam, vão lá, eles vão seguindo o caminho e quando eles voltam, conclusão, não adiantou nada, não aconteceu nada com esse esforço que nós fizemos porque o dinheiro simplesmente não chegou nas pessoas, ficou no caminho porque não tem logística para distribuir, porque tem o jogo político que mete a mão no dinheiro, porque tem guerrilheiros que roubam o dinheiro que está lá, ele falou fizemos um baita esforço e o dinheiro não chegou lá, talvez por isso nunca mais, teve mais uma ou duas ações como essa e acabou, não tem mais porque o cara conclui… o DVD é impressionante, você está embevecido, quando chega no final, falei não deu, o dinheiro não chegou lá, parou no meio do caminho.
Rafael E quando você está lá, você sente isso na pele, você entende o funil que é o mundo inteiro colocando dinheiro em cima e embaixo caindo uma fraçãozinha para eles assim e você entende a coisa mais cruel que pode existir que é a pobreza, um grande produto que dá grande lucro, isso foi muito cruel, porque assim, eu saí decepcionado do capitalismo, daquela coisa que não ajuda ninguém que não sei o quê e eu estou aqui? Isso aqui é mais desonesto porque isso aqui usa a sua vontade de ajudar, a sua boa vontade, o seu esforço para supostamente ajudar essas pessoas, quando não é ajudado, assim, eu me lembro que eu pensei assim, puta o capitalismo é cruel, pelo menos ele é honesto, você tem dinheiro, come; não tem dinheiro, morre de fome, acabou. Aqui não, aqui tem essa manipulação que não, vem, ajuda, a gente não está lucrando, mas está lucrando rios de dinheiro.
Luciano Em algum lugar está ficando. Em alguma capital europeia tem alguém ficando com a parte.
Rafael Aí eu fui pesquisar essa organização, descobri que essa organização, ela está dividida em vários países do mundo, tem, inclusive, no Brasil, no nordeste. Cada lugar ela tem um nome diferente, ela está há trinta anos aí nos países, ela começou de uma ação até que interessante, um grupo de estudantes que queria ver a pobreza num ônibus, mas depois se converteu numa puta empresa, eles eram o segundo maior empregador do país que eles estavam, primeiro era o governo, então eles que organizavam a maioria das escolas do país, que seriam dar cursos, mas o curso deles é para eles, para trabalhar na própria organização, então toda aquela coisa de comunidade, de perder um individualismo, eles estão ensinando isso em massa no país, você vê os funcionários recebendo lá 25, 30 dólares de salário por mês tendo que devolver 5 para a organização, porque era para a organização, para a comunidade, então você vê uma coisa realmente assustadora, eu falo assim eu não acredito que isso acontece no mundo.
Luciano E a molecada entrando aos centenas de milhares nisso.
Rafael Sim, exatamente, em vários países. Aí você fica desesperado, eu estava lá, minha passagem de volta estava para dali seis meses…
Luciano Para voltar para treinar…
Rafael … para voltar para os EUA para supostamente treinar outra galera, não tinha dinheiro para voltar para casa e estava ali, falei puta, o que eu estou fazendo aqui? Os livros que você leva para ler em uma semana você já leu tudo, porque pouquíssima internet, pouquíssima energia elétrica e tal, foi quando eu conheci esse líder comunitário, ele nos abriu os olhos e falou vocês querem fazer alguma coisa? Tem uma comunidade próxima daqui, uma hora e meia de bike, eu posso levar, apresentar vocês e vocês se prontificam a ajudar para o que eles precisarem. Mas é independente, não é nada da organização, fomos lá de bicicleta, tivemos uma primeira reuniãozinha com as mulheres e tal, falei nós estamos aqui para ajudar, vamos estar aqui seis meses e tal e aí elas se reuniram entre elas, o Tony era o tradutor, a gente falava com ele em inglês, ele traduzia para elas e tal e eles falaram, elas precisam de uma under five clinic, primeira vez que eu tinha ouvido isso e eles perguntaram e já esperaram a resposta e eu fiquei olhando para o meu amigo Cetúlio e aí…
Luciano O que é under five clinic?
Rafael … o que é under five clinic? E naquela ânsia de trabalhar, aí falamos sim, vamos fazer. Vamos fazer. E aí ah, dança, aquela celebração como se já tivesse feito, já tivesse ganhado, aí voltamos para a casa pensando o que é isso? Como que a gente vai fazer isso? Aí a gente foi investigar e descobri, uma under five clinic é como se fosse um postinho de saúde aqui, atende criança menor de cinco anos e é um ponto de atendimento base para desafogar os hospitais maiores. Então eles pesam, medem as crianças, vê se está com malária ou não, mantem um arquivo de todas, é um posto de atendimento básico. Falei puta como é que a gente vai construir isso, não tem dinheiro nem para voltar para casa, como é que eu vou construir isso, e aí a gente começa a pensar, como? E aí eu comecei a observar as ferramentas que nós tínhamos, pô eu tenho uma câmera, tenho um violão, microfone…
Luciano Era o teu amigo lá.
Rafael … era o mesmo da Plaiyng for África…
Luciano Eu vou de tour pela África
Rafael … aí eu falei, temos uma página do Facebook, Plaiyng for África, da banda, tem uns likes lá, temos aqui ferramentas, o que você acha de a gente fazer um vídeo, vamos gravar um vídeo mostrando a problemática da comunidade, a gente posta no Youtube, no Facebook e a gente pede doação, quem sabe a gente consegue? Pô então vamos, aí fomos na comunidade de novo, vamos gravar um vídeo e tal, eu fiz um story boardzinho que eu imaginava, escrevi um roteiro, vai ser assim, filmei e tal, aí fui editar o vídeo, não tinha muita experiência em edição, première e tal, isso aquilo, consegui, exportei o vídeo da pior maneira possível que depois eu fui aprender, deu um giga e tanto o arquivo e aí para subir na internet, não tinha internet, eu tinha esquecido desse detalhe, falei puta, o projeto acabou antes de começar, não tem nem internet pra subir, do celular não dá e aí o Cetúlio falou, eu vou começar a stalkear pessoas no Facebook, vai que eu encontro alguém, aí ele stalkeando, buscando pessoas, encontrou um fotógrafo, numa cidade Blantyre que estava há mais ou menos duas horas e meia, três horas de onde a gente estava, o cara era fotógrafo de casamento, pode ser que ele tinha internet, então a gente entrou em contato com o cara, você não nos conhece, mas a gente está precisando de internet para um trabalho voluntário, será que você pode subir um vídeo pra gente no Youtube? A gente te passa a senha. O cara claro, me encontra num lugar tal aí, a gente pegou o ônibus, foi lá, chegou lá o cara estava lá, nos apresentamos, falamos está aqui o vídeo num pen drive, está aqui a senha do nosso canal no Youtube, você pode subir pra gente, mandar o link por WhatsApp e aí no WhatsApp a gente publica no Facebook e compartilha, beleza, o cara fez isso, daí dois dias ele mandou o link para a gente, aí a gente foi na página do Plaiyng for África, publicou, legal, só esperar. Umas horas depois veio o primeiro comentário, meu amigo falou já tem um primeiro comentário. Chegou lá era o comentário de uma pessoa detonando o vídeo, onde já se viu usar a pobreza para ganhar dinheiro, fica explorando a enfermidade dessas pessoas e é só arrecadação, era aquela crítica macro que todo mundo tem, só que estava para o meu vídeo, não não confiem nisso, aí foi a deprê total, falei caralho, o primeiro comentário, o que eu fiz de errado? O que aconteceu? Aí eu comecei a analisar o material que eu tinha feito e o que eu tinha feito era um vídeo que estava reproduzindo esse discurso que todo mundo tem e África, pobreza, miséria, aquela criancinha triste, a mãe desempregada, não sei o que…
Luciano Deposite nesta conta.
Rafael … deposite na minha conta, era pessoal ainda. Eu pensei, aí eu parei para olhar ao redor e falei, mas não é isso que eu estou vendo, eu estou vendo pessoa triste, necessitado, mas é uma felicidade, eles estão cantando, estão dançando, nos recebem bem, eu acho que eu tenho que mostrar isso, eu não tenho que mostrar o que todo mundo está mostrando, está todo mundo cansado de ver aquele negrinho desnutrido, sabe, eu tenho que mostrar o que está acontecendo, não vou fakear nada, aí eu falei…. aí eu perguntei para o cara, como é que se diz felicidade em chicheua, aí ele falou “okondwa”, aí eu falei legal, aí eu escrevi um roteiro que começava tristíssimo, temos tanto por cento de diarreia, não sei quantos índices de malária, desnutrição, mortalidade, mas nós temos um índice que é o mais elevado de todos, se chama okondwa e é o mais contagioso e aí a partir dali o vídeo dava uma virada e mostrava felicidade, música e tal, no final do vídeo é ajude a gente a superar nossos problemas que a gente ensina o okondwa para vocês. Aí a partir dali a coisa pegou outro…
Luciano Muito bom, subiu de novo, o cara subiu de novo.
Rafael … aí o cara subiu de novo, realmente fizemos um novo processo, aí ali a gente entrou numa nova onda, vamos desfrutar o que a gente está fazendo aqui, vamos curtir, vamos mostrar para o pessoal que apesar de tudo isso a galera aqui é muito feliz e começou a mostrar um lado que teoricamente ninguém mostra, que a organização não quer mostrar, porque se mostrar ninguém doa e a gente foi construindo a nossa linguagem assim. Aí uma ou outra doaçãozinha começou a aparecer nas nossas contas pessoais, só que ainda não dava para construir a clínica, aí eu lembro que eu tive uma ideia, eu falei vamos fazer então, a gente tem que dar alguma recompensa para as pessoas, tinha que mostrar para elas que elas estão doando com uma gratidão, eu falei tem as crianças que vão usar a clínica, vamos colocar elas para desenhar cartões postais feitos à mão e para cada doação a gente envia por correio o cartão postal, independente do valor da doação, além disso vamos fazer uma placa que vai ter o nome de todo mundo que doou, como essas placas de inauguração que tem o nome do prefeito, do governador, vai ter o nome de todo mundo que doou e a primeira versão dessa placa vai ser digital, vai ser no Facebook.
Luciano Isso antes de crowdfunding, não tinha nada disso ainda?
Rafael Não, estava começando ainda.
Luciano Foi na unha mesmo.
Rafael Foi na unha. E aí a gente começou com essa estratégia, a pessoa doava eu pedia o endereço, as crianças desenhavam o cartão e eu ia lá na cidade e postava por correio, demorava não sei quanto tempo, chegava…
Luciano Chegava um selinho da África, uma carta da África.
Rafael … e aí no verso do cartão postal que a criança tinha desenhado, eu escrevia algumas palavras de agradecimento, aí as pessoas começaram a tirar foto disso e postar no Facebook, puta que legal, recebi isso. E aí uma pessoa foi falando para outra, falando para outra e a gente começou a ter um nível de arrecadação legal, no meio desse caminho um canal da Colômbia, como uma espécie de TV Cultura viu o que a gente estava fazendo e quis gravar uma entrevista com a gente, então eles mandaram as perguntas escritas e a gente gravou a resposta e eles editaram aqui e foi para o ar e aí a gente começou a receber muito comentário na página, pô que legal que vocês estão fazendo aí, que não sei o quê, bacana, aí o Google, Colômbia entrou em contato com a gente, que alguma funcionária tinha visto, pô vocês estão usando as redes sociais para mudar a realidade e tal, nós vamos fazer, quando vocês estiverem por aqui, vamos fazer uma reunião e tal, então a gente começou a ganhar um corpo…
Luciano E vocês não eram uma entidade, vocês não era nada, dois caras.
Rafael … era um designer e um guitarrista de blues…
Luciano O nome fantasia de Playing for África.
Rafael … Playing for África, que nesse momento estava se tornando um projeto social, era uma banda e estava se tornando projeto social, o que aconteceu foi que no meio do projeto a organização cresceu o olho, porque viu que a gente estava fazendo uma coisa relativamente grande, a gente estava dando zero crédito para a organização, então começaram a chegar na gente, e aí, quando é que vocês vão colocar o logo da organização nas redes? Quando é que vocês vão dizer que vocês estão trabalhando para a gente. Não, não vai acontecer porque vocês não estão ajudando, aí começou aquele atrito até que eles nos deram um ultimato: já que vocês decidem não trabalhar com a gente, então vocês saem da casa que vocês estão que é nossa, a passagem que vocês vão voltar daqui seis meses, eu remarco para daqui dois dias, se você embarcar, embarcou; se você não embarcar eu vou entender que você quer ficar aí e vocês decidem e deu realmente um ultimato na gente.
Luciano Que coisa. E aí?
Rafael E aí eu lembro que a gente entrou em crise, o que a gente vai fazer? A clínica estava na metade, galera esperando com que a gente entregasse, já tinha o comprometimento com as pessoas que doaram, que queriam ver o projeto pronto, comprometimento com a comunidade que estava esperando a coisa ficar pronta e a gente no meio daquilo, aí eu lembro que eu cheguei para a organização e falei assim, olha, eu posso colocar o logo de vocês no vídeo, só que como a gente trabalha adiantado, eu já tenho os vídeos editados e feito o upload até o décimo quinto já está pronto, era mentira, eu estava no nono ainda, então eu não posso colocar até o décimo quinto eu não posso colocar porque eu teria que refazer tudo, eu posso a partir do décimo quinto, então a partir do décimo quinto vocês vão ter crédito. Só que era mentira, eu estava fazendo o nono ainda, eu tinha uma programação para fazer uns vinte vídeos, aí eu ia fazer da comida, da música local, aí eu falei não, a gente vai ter que fazer em quinze e vamos inaugurar a clínica no décimo quinto e acabou o projeto e aí a gente foi levando, aos trancos e barrancos, eles vinham querer ver e a gente não, está saindo, não estamos editando que não sei o quê e tal, até que eles perceberam que o nosso tempo lá estava diminuindo, estava chegando o tempo de a gente ir embora e os vídeos não saíam e eles perceberam que a gente ia inaugurar a clínica sem eles. Aí, eu nunca esqueço disso, eu lembro que a clínica já estava bem avançada, a gente pintou, fez um logo de madeira, a clínica se chamaria Okondwa, que é felicidade, a gente pintou por fora, desenhou crianças e tal, fez a placa com os nomes, como sobrou um dinheirinho a gente instalou um painel solar, então foi a primeira construção ali da região que teve uma luzinha de led, foi muito emocionante instalar o led e ver eles vibrando com aquilo e uns dois dias antes da festa de inauguração parou uma caminhonete da organização lá e distribuiu camiseta da organização para todo mundo e na hora eu não entendi muito bem, mas depois num dia da organização…
Luciano Estava todo mundo com a camiseta.
Rafael … todo mundo uniformizado e aquilo para mim foi um baque muito grande, porque putz, na cabeça deles quem estava dando isso para eles era a organização e eles são muito humildes, então eles não estavam entendendo, para eles era uma celebração da organização e todo mundo da organização foi lá ver a inauguração e quando na verdade a gente tinha feito com doação das pessoas, então aquilo foi um golpe muito grande para a gente assim, mas inauguramos, fizemos tudo e tal e eu lembro que um pouquinho antes de a gente ir embora, o Tony, que era o líder comunitário, uma vez a gente estava voltando de bicicleta e eu falei para ele, qual o seu maior sonho? O que você sonha? Ele falou meu maior sonho é estudar, eu queria estudar, eu queria terminar o colégio, fazer um curso técnico e tal. Falei quanto custa isso? Ele falou não faço nem ideia, mas vai custar uns 600, 700 dólares, um ano, um ano e meio de um curso técnico. Quanto você ganha? Ganho 30 e devolvo 5 para a organização e tinha dois filhos para criar, um que ele tinha adotado, que ele encontrou na rua. Eu falei porra, a chance de esse cara estudar é nunca com esse dinheiro. Aí eu falei vou fazer um vídeo seu, então, apresentando você, que você é o líder e você fala do seu sonho, se alguém se interessar a gente vê o que acontece. Aí isso a gente estava no meio do projeto mais ou menos, aí eu fiz o vídeo e lancei, aí o Marcos, lembra aquele meu amigo marcos? Me ligou, falou pô, a história desse cara me comoveu porque quando a gente trabalhava lá, a empresa pagou a minha universidade e eu só estou onde eu estou hoje porque alguém me ajudou, então eu vou pagar o estudo dele e ele me mandou esses 600 dólares, só que na época a gente não tinha concluído a clínica e não sabia se a gente ia concluir, então o que eu decidi? Eu vou guardar esses 600 dólares, se der alguma coisa errada, eu vou sacrificar o Tony mas vou fazer a clínica, se der tudo certo eu entrego o dinheiro para o Tony. Então teve mais ou menos dois ou três meses que o Tony já tinha o dinheiro, só que ele não sabia e quando você está na África, muitas pessoas, eles tentam tirar uma vantagem de você, então o cara vai comprar não sei o quê você dá o dinheiro, o cara volta sem o troco, então são pequenas coisinhas que você até entende, a miséria lá é tão grande que você até perdoa assim, ok e tal, então está todo mundo, de uma forma ou de outra, tentando tirar uma vantagem de você e o Tony, o cara foi honesto do princípio ao fim, eu lembro que teve um dia que tinha que entregar um saco de cimento na clínica e lá é assim, você compra o saco de cimento, o ara fala legal, pega aí, mas tem que levar lá, ou você leva ou pede carona, ou paga um taxi que era uma bicicleta, e o Tony fez isso e eu tinha esquecido de dar o dinheiro do taxi para ele, da bicicleta e eu fui lembrar umas duas semanas depois, falei cara, não te dei o dinheiro do taxi, ele falou não, não esquenta não, eu paguei, então você via que o cara estava fazendo pela comunidade, se ele tivesse feito alguma outra coisinha no meio do caminho ele teria perdido esse dinheiro, aí quando terminou tudo a gente foi na casa dele e falei ó, tenho aqui uma surpresa para você, aí o Marcos gravou um vídeo, a gente mostrou o vídeo no notebook e aí entreguei o dinheiro para ele, um bolo de dinheiro assim, porque 600 dólares convertidos em kwachas lá, um bolo de dinheiro, eu lembro que ele ficou suando, começou a suar assim, suar, suar, gaguejar e falou muito obrigado e tal e ele queria estudar gerenciamento de projetos, era justamente esse tipo de coisa para ajudar a comunidade e aí ele ganhou esse dinheiro e falou a única coisa que a gente pede é que você mande fotos das tuas notas sempre e depois no final foto do seu certificado. Beleza. A gente volta para a organização e no mesmo dia que a gente volta, a gente chega, deixa a mochila, a diretora ah uma reuniãozinha aqui com vocês, aí sentou a gente lá…
Luciano Nos Estados Unidos?
Rafael … lá nos EUA, sentou a gente lá e falou ó, como vocês não fizeram nada, vocês estão expulsos do programa, nós como assim a gente não fez nada? A gente fez uma clinica. Aí ela que clínica? Uma clínica. Não, vocês não fizeram nenhum relatório, porque tinha que fazer uns relatórios deles lá. Tem 15 vídeos feitos, quer relatório melhor que esse? Não, você não tem relatório nenhum, seus amigos fizeram relatórios e as suas tarefas? Vocês fizeram as suas tarefas? Estava fazendo uma clínica. Não, a gente não está sabendo de clínica nenhuma. Ai eu falei vocês são entidade humanitária e você está me colocando na rua, porque daqui eu não tenho para onde ir, eu não tenho dinheiro para voltar para o Brasil, eu esperava que eu ia dar um tempo, mas não. Falou não, problema seu. Aí a gente saiu, pegou a mochila, do jeito que a gente estava vestido, roupa de África, calça, camiseta, está na rua sem ter para onde ir. Eu lembro que eu falei para o meu amigo, vamos primeiro procurar um McDonald’s que tem aquecedor, já era inverno de novo e lá tem internet e lá a gente vê o que a gente faz, aí no meio do caminho, a gente caminhando, indo a pé para o McDonald’s, putíssimo assim, aí meu amigo falou como é que a gente dá uma revanche em cima desses caras, como é que a gente faz? Falei ó, eles já ficaram muito putos com a gente porque a gente fez uma clínica e não deu crédito, se a gente lançasse um livro de fotografia mostrando tudo o que a gente fez e não dá crédito para eles e mais, a venda desse livro vai ser revertida para a clínica, para continuar os atendimentos lá, aí o cara pô, vamos fazer, mas como é que a gente faz? Falei não sei, não tem dinheiro, não tem nada, mas eu gostaria de fazer isso, como uma resposta à essa expulsão, legal, fomos para o McDonald’s e acabamos encontrando uma senhorinha colombiana que morava em Chicago, que aceitou nos receber por 30 dias em troca de ajudar ela a trabalhar no escritório ginecológico, que ela era recepcionista, tinha queimado o antigo escritório tinha queimado, queimou uns arquivos, ela falou preciso que vocês reorganizem os prontuários dos últimos 30 anos em ordem alfabética, se vocês fizerem isso vocês podem ficar aí e comer na minha casa e a gente fez isso, 30 dias lá trabalhando, aí meu amigo falou, já que a gente vai lançar o livro, vamos para a Colômbia, vamos para a minha casa, porque lá a gente lança o livro em português e espanhol, vende lá, depois a gente volta para o Brasil e divulga no Brasil. Falei legal, aí a partir dali a gente decidiu vamos para a Colômbia, foi quando eu fui para a Colômbia, fui com ele, cheguei na casa dele e fui conhecer o pai, a mãe e tal, cheguei. Ó chegou meu amigo, ele vai ficar um tempo aí que a gente está pensando em lançar um livro. A ideia do livro não existia, nunca existiu, o projeto todo foi se construindo no meio do caminho sem a gente planejar nada e aí chegamos na Colômbia e começamos a formatar as fotos, a gente tinha tirado fotos mas sem a pretensão de livro, era documentando todo o processo. Aí separa foto, escreve texto e tal, aí liga para os amigos para fazer vaquinha para poder publicar o livro, para imprimir o livro, aí como eu sou designer eu diagramei o livro, fiz o projeto gráfico e tal, que é esse, o pai desse meu amigo, ele é marceneiro, aí minha primeira ideia de livro era desse tamanho, aí você vai cotar, aí ficou pequeno, falei está muito pequeno, que você acha de a gente fazer uma caixinha artesanal de madeira que mostra esse cuidado de um a um, que é essa coisa que… artesanal mesmo, e aí pô, vamos fazer e aí fizemos esse projeto do livro e tal, fizemos essas caixinhas uma a uma, manual…
Luciano Quantas foram feitas?
Rafael … 750 e aí cada livro tem uma numeração que mostra que…
Luciano Estou vendo aqui, estou segurando um na minha mão, ele me deu de presente, eu não sabia o que era, numa caixinha de madeira muito bem feitinha, que está aqui, ele falou não abre, antes de eu contar a história, então eu vou esperar ele terminar a história e aí eu vou abrir, aqui você puxa, olha que barato. E na capa do livro um garotinho com um baita de um sorriso.
Rafael Que é a essência do projeto.
Luciano Que é a essência do projeto.
Rafael … aí o que acontece? Ah, como é que a gente vende isso aí? Ele falou, eu posso ir na universidade que eu estudei, lá em Bogotá e pedir para fazer uma apresentação para os alunos, a gente conta a história e vende o livro. Legal, aí conseguimos uma primeira apresentação, foi aí que entrou o coiso do dublê de palestrante, aí subi, contamos a história, o pessoal gostou, começamos a fazer umas pequenas vendas, mas a venda era só feita em dinheiro mesmo, porque não tinha cartão nem nada e aí pediram uma segunda apresentação, fizemos uma segunda, logo outra universidade ligou e fomos para outra universidade, fiquei seis meses na Colômbia…
Luciano Contando a história.
Rafael … contando a história e vendendo livro, um a um…
Luciano Sem ter uma entidade, sem ter uma organização, vocês não tem CNPJ, vocês não tem nada.
Rafael … nada e muitas das pessoas cobram isso da gente, a gente chega, faz a apresentação, ó tem essas pessoas que compraram, mas tem essa lista de pessoas que deixaram o nome que querem comprar, mas não tinham dinheiro.
Luciano Eu achava que agora era o momento que você ia falar que o que salvou minha história foi o fato de eu ter deixado a empresa aberta no Brasil e aí a gente conseguiu fazer isso.
Rafael Eu deveria ter feito isso, isso é uma coisa que eu aprendi que eu deveria já ter me planejado para vender, ninguém anda com, na época a gente vendia a 50 reais, ninguém anda com 50 reais no bolso para comprar livro.
Luciano Quando foi que isso aconteceu?
Rafael Isso aconteceu, o lançamento do livro, faz dois anos, e aí a coisa foi pegando corpo, aí um dia teve o TEDx Bogotá e aí ficaram sabendo da nossa história, nos convidaram, aí fizemos o TEDx Bogotá e aí foi um boom, falei como é que eu fiz um projeto desse, não imaginava que um dia fosse parar num Ted.
Luciano Sim, isso tudo com uma clinicazinha feita numa cidadezinha que ninguém sabe onde fica…
Rafael Em Chikwawa no extremo sul do Malawi. Foram 72 doadores de 4 países. Foi Brasil, Colômbia, Coréia e Japão
Luciano Mas então, pra gente provocar o ouvinte que está nos ouvindo aqui, você não falou 72 mil doadores, você falou 72, que é 50 mais 22. Nada, de quantos países?
Rafael De quatro países.
Luciano Quatro países, feito pelo Facebook, uma parte Facebook…
Rafael E Youtube.
Luciano … num lugar sem internet, com um recurso que você tinha na mão…
Rafael Câmera e microfone.
Luciano … simplesmente com uma sacada de contar uma história dali, você pega e de certa… certa forma não, realmente muda a realidade daquele ambiente e vai parar num TEDx para contar essa história.
Rafael E aí, uma coisa muito legal, que é… tem um podcast seu que você fala de propósito, quando você encontra propósito, eu encontrei isso quando eu estava no meio de um processo, eu estava gravando um vídeo, ali fazendo a direção, seguindo o storyboard, o Tony falando o roteiro, aí me deu uma luz assim, falei cara, é isso que eu gosto de fazer, eu gosto de conta história, eu gosto de escrever roteiro, conectar pessoas e mudar a realidade de pessoas, que essas pessoas estão tão necessitadas de uma coisa, Luciano, a clínica custou 5 mil dólares, 4 mil e alguma coisa, você fala puta, 5 mil dólares não é nada, 72 pessoas não são nada, mas representa a vida, representa a vida para crianças, crianças não vão morrer por isso.
Luciano Sim, é aquela história da utilidade do dinheiro, que para você é porra cara, tirar 100 reais do meu ganho mensal não é nada, agora por o cara que ganha por mês 200 reais, é 50% a mais de ganho para ele e a proporção muda.
Rafael Você imagina o Tony, com salário de 25, chega e recebe 600 dólares, isso é impensável, então depois do TEDx a gente foi parar no TEDx de Bauru, lá na UNESP, então os convites foram acontecendo assim, e a coisa foi tomando uma proporção que eu não imaginei que tomaria, aí vai no Epicentro, do TEDx eu vejo o Epicentro que eu vi o seu podcast com o Jordão e me apresentei no Epicentro e até hoje eu sigo me apresentando e vendendo o livro, eu estive no Equador agora, uma organização nos convidou para contar a história lá, então o que acontece? Quem vê hoje o projeto pronto, parece que ele foi planejado, não, ele veio e montar uma banda, ir para o Malawi, vai ter uma clínica e eles vão lançar um livro e fazer palestra para vender o livro, mas nada disso foi planejado, foi tudo por tentativa, erro; tentativa, erro, vai acontecendo.
Luciano E a sequência dessa história aí, já tem a segunda clínica? Já tem… como é que essa coisa se organiza para virar um multiplicador?
Rafael Então, aí o que acontece? Quando eu termino as palestras, todo mundo vem falar para mim, porra eu sabia que isso acontecia na África, aí eu acreditava no Médico sem Fronteiras, eu acreditava em Greenpeace, eu falo calma aí, não quero generalizar e dizer que nenhuma organização funciona, essa organização que eu fui, infelizmente não é séria, está há 30 anos no país, inclusive a BBC fez uma reportagem há um tempo atrás, desmascarou os caras, desceu metade do faturamento, mas já estão voltando de novo, porque tem associação com o governo. Mas é preciso valorizar as ações também pequenas e eu me vi a um ponto que as pessoas começaram a me pedir para virar ONG, que era justamente aquilo que eu lutei contra…
Luciano Então, mas vê a pegada interessante, quer dizer, você passou por um processo de desindividualiação tremendo e você consegue fazer essa coisa acontecer quando você, de novo, é o indivíduo, que dizer, abandona esse coletivismo, essa coletividade que é burocrática e que não funciona e eu como indivíduo vou tomar minha decisão aí eu pego e mudo e você está sentado na minha frente contando uma história porque você não foi abduzido por aquela postura do coletivo e contra o indivíduo.
Rafael Em algum momento pensei que meu cérebro estava se formatando, quando eles venceram as batalhas eu pensei pô, perdi, vou virar um.
Luciano E aí vem essa pressão para vocês virarem ONG etc e tal. E aí?
Rafel Virar ONG e tal, e aí o que acontece? O Tony termina o curso técnico, posta foto de diploma, tudo isso tem na página, no Playing for África no Facebook, aí eu falei e agora? Ele falou agora eu queria fazer uma universidade, aí eu falo para o Marcos, o Marcos, vamos seguir pagando a universidade dele e aí ele vai estudar gerenciamento de projetos numa universidade, então eu me orgulho muito da clínica, mas o trabalho que eu fiz com o Tony, que nós fizemos com o Tony, para mim é o mais importante, porque ele entendeu, ele é aquela peça que sai do sistema, porque ele falou para mim, aqui nós continuamos escravos, nós somos escravos mentais, ele falou isso para mim e quando eu dou ferramenta para esse cara estudar e ele consegue se destacar no sistema, isso é a verdadeira transformação.
Luciano Isso é diferente de dar um saco de comida. Eu tenho um patrocinador do Café Brasil, é a DKT, a DKT com os produtos Prudence e eles tem uma história fabulosa que envolve essa questão do hiponga preocupado com a fome na África se mexendo, mandando comida até descobrir que aquilo não resolve nada, que aquilo só perpetua o problema, quer dizer, dar a comida não resolve nada e o cara vira a história toda e fala não, eu vou lá, eu vou me colocar lá e eu vou fazer a clínica e eu vou, eu não estou mais dando comida para ninguém, aliás eu nem dou mercadoria para o cara, eu vendo a um preço simbólico para que eles entendam que aquilo… e aí o cara começa a mudar a realidade lá, então muda porque está atuando lá direto, ele falou, não estou mais mandando comida para ninguém.
Rafael Por exemplo, a clínica, os blocos da clínica foram feitos pela comunidade, o líder comunitário falou olha, cada família tem que trazer vinte blocos para construir a clínica, eu via mulheres trazendo com baldes na cabeça os blocos correspondente à parte da família dela para construir a clínica. Os pedreiros da comunidade, as mulheres faziam comida para o pedreiro construir, então foi feito com todo mundo e aí a coisa tem um outro valor.
Luciano E é deles e não estou sentado esperando o estado vir aqui e fazer.
Rafael Exatamente. Aí o que aconteceu…
Luciano E hoje, você está fazendo o quê?
Rafael … aí eu voltei, depois de todo esse maremoto, essa confusão toda, eu voltei e tentei voltar à vida comum, porque chega uma hora que você passa, fiquei dois anos e pouco aí viajando, sem dinheiro fazendo isso, aí você aterrissa de novo, ok, só que uma vez que você encontra o seu propósito, aí você não fica em paz e eu não consigo tirar aquilo da cabeça, sabendo que aquelas pessoas precisam de ajuda, precisam de ferramentas para evoluir, então quando eu te escrevi no e-mail assim, ah tem alguma coisa de meritocracia que eu não concordo e tal, foi o que eu falei quando eu cheguei aqui, é muito impressionante ver que a voz que eu escutei por muito tempo tem um corpo, e muitas vezes você falando e eu discordava de você, não vou mais ouvir e desligava, aí logo depois um amigo meu, você conhece o podcast Café Brasil? Você já ouviu? Aí eu puta, não, tem outra pessoa falando, tem que ouvir, aí eu ouvia de novo aqueles três programas sobre meritocracia e aí entendia a sua visão que a meritocracia está depois dos problemas sociais, não culpa os problemas sociais por meritocracia, enfim, ai eu escuto o do propósito, eu encontrei meu propósito e tal, mas como fazer que isso funcione, porque legal, você encontrou seu propósito, isso é o que move seu coração, mas não faz sentido dentro de um sistema capitalista, desestruturado, nenhum dono de empresa vai falar está aqui 20 mil solares, a troco do quê? Ah não, você vai dormir feliz porque tem crianças lá que estão sendo… Não funciona assim sabe. E aí o Tony recentemente me chamou e falou ó, eu estou em outra comunidade, essa comunidade está me pedindo outra clínica, é uma comunidade maior, eles estão precisando de um orfanato e tem essas crianças que estão estudando nessas condições, aí mandou foto para mim, as crianças estudando no chão, no sol.
Luciano Lá vamos nós. Playing for África.
Rafael Ai eu falei não, preciso voltar lá para fazer isso, preciso, como é que eu encontro financiamento, aí comecei a estudar sobre o empreendedorismo social, falei não, eu não posso ficar pedindo dinheiro para as empresas, porque não é nem função da empresa, a empresa já tem um puta trabalho par vender e pagar, o faturamento, pagar funcionário e ai vou lá eu pedir dinheiro? Aí pô, eu tenho que fornecer algum serviço em troca disso, aí eu comecei a pensar que eu poderia produzir conteúdo, porque se você pensar na história da clinica, ela é uma websérie dividida em 15 episódios, de conhecer a comunidade até entregar a clínica…
Luciano Dá para vender para o Netflix.
Rafael … exatamente, na minha cabeça, Luciano, fez total sentido, falei isso é um produto de entretenimento, isso é uma série, só que é uma série real.
Luciano E capaz de inspirar as pessoas quer dizer, não é baseado em fofoca, é neguinho fazendo acontecer.
Rafael E é real, vai lá e…
Luciano Atenção, eu falei neguinho aqui me referindo a você que é um brancão, porque vai ter neguinho, olha ai, o cara falou neguinho. Neguinho para mim é um ser humano, uma pessoa.
Rafael A patrulha, a patrulha do politicamente correto. E aí eu pensei, isso é fundamental, é genial, vai lá, produz uma série, que na minha cabeça, em vez de uma empresa pagar 50 mil para fazer um comercial anunciando um produto ou o quê, por que não investe esse dinheiro, vai transformar realidades e vai gerar conteúdo para as redes sociais e tal, só que uma coisa é a teoria, outra coisa é a prática, fazer uma empresa brasileira investir no Malawi, e outra que está relacionado com o quê dos produtos deles?
Luciano Você precisa arrumar uma ponte para construir lá e chamar uma empreiteira.
Rafael Aí funcionaria. Aí o que aconteceu? Eu tive uma experiência que eu quase consegui, mas aí política é brincadeira, o Tony falou precisa disso, disso e daquilo, e um político, que aí eu não vou citar nome, entrou em contato, conhecidíssimo até, entrou em contato comigo e falou pô, ouvi sua palestra, legal, você precisa de ajuda? Falei preciso, preciso de um orfanato, precisa de uma clínica. Pô, vamos fazer, eu te ajudo, eu estou lá em Brasília e eu tenho parceiros e não sei o quê, cota aí. Aí vai, liga para o Tony, o Tony conta as pessoas, vê lá uma estimativa, construção, um mês fazendo projeto, planilha, chego para o cara, apresentar, legal, nossa o seu livro, posta foto do livro na página do Facebook, estou aqui fazendo esse projeto na África e não sei o quê e tal, mas aí novamente a coisa não sai, passa uma semana, e aí? Vamos ver. E aí a comunidade com expectativa lá e aí, vamos ver, aí você entende a lógica da política, para quem está olhando na timeline do Facebook, ele está fazendo o projeto, passou uma notícia, estou fazendo o projeto na África, puta que legal, passou, foi.
Luciano Eu não vou insistir para você falar o nome desse cara, porque se você falar o nome você estoura uma ponte, então não fale porque pode ser que saia alguma coisa.
Rafael Sim, e aí foi muito decepcionante para mim, porque eu criei expectativa na comunidade, criei expectativa para mim e não aconteceu e o cara fez notícia por uma semana no Facebook e passou e aí me deu uma decepcionada, é muito mais difícil do que a gente imagina conseguir fazer…
Luciano Você está vivendo de que hoje?
Rafael Eu continuo como designer, fazendo o meu freelancer, mas tentando viabilizar isso.
Luciano Quem quiser, a gente vai… nós passamos estouramos o time aqui de montão, mas a história é excelente, eu estou com a caixinha, ganhei um livro muito legal. Quem quiser se aproximar desse projeto, conhecer, conversar com você, quem sabe alguém nos escuta aqui e fala eu quero embarcar nessa aí, como é que faz para te encontrar? É o Playing for África?
Rafael É, você pode ir pela página do Facebook Playing for África que lá eu sou o gerenciador da página, então a mensagem vai chegar para mim, busca no Youtube Playing for África ou Okondwa, que vai aparecer todas as minhas apresentações…
Luciano As palestras do TED estão no Youtube? Se for no Youtube põe o teu nome? Põe o quê lá?
Rafael Põe Playing for África ou Okondwa, que é (ele soletra).
Luciano Okondwa.
Rafael Que é felicidade, vai estar todas as minhas apresentações tanto do TED quanto do Epicentro também e aí o que eu tenho a dizer para as empresas ou quem quiser apoiar, é o seguinte, tem uma causa lá sem intermediário, sem burocracia sabe, eles realmente precisam de uma escola, de um orfanato e uma outra clínica e tem a possibilidade de ir e fazer, não perpetuar a pobreza e instalar uma ONG, ficando lá 20 anos e não sair, então o que poderia ser oferecido em troca é que isso pode gerar um produto criativo muito bom, uma série, então quando eu voltei eu me especializei também em áudio visual, então dá para produzir coisa bacana, contar história legal e fazer com que isso volte para a empresa de alguma forma que tem que ser reconhecida e o mérito tem que ser de quem doou, da mesma forma que tem os nomes das pessoas que doaram para a clínica lá, a pessoa que está ajudando merece ser reconhecida por isso que eu falei tanto do Marcos aqui, que ele apoiou grande parte do projeto.
Luciano Esse Marcos aí é uma figura, quero conhecer essa figura ai.
Rafael É, o Marquinho. Foi ele, para você ter uma ideia, quando você me respondeu o e-mail, umas horas depois ele me mandou um print de um post do Café Brasil aí eu mandei um print do seu e-mail.
Luciano Que legal.
Rafael Então, quem quiser realmente apoiar uma causa verdadeira e ter um produto criativo na mão e realmente transformar realidades em pouco tempo, eu já pensei em vários pacotes assim que a empresa pode fazer isso e levar colaboradores para lá para trabalhar duas, três semanas, dá para fazer muita coisa.
Luciano Olha, esse aqui é o terceiro LíderCast que eu gravo baseado em uma experiência de brasileiros que estão modificando as coisas na África, você é o terceiro, já tem dois, o Rony e o Marcelo e a Evelyn e agora você, então essas coisas acontecem, eu não vou alongar, mas o Brasil também precisa, tem lugares que precisam que isso aconteça, mas isso a gente vai na sequência e eu para terminar vou terminar com uma provocação, vou te dar uma aulinha de meritocracia básica…
Rafael Vamos lá, ó, essa sua coisa de meritocracia fez eu ficar nervoso com você por um tempo, não acessei o Café Brasil, depois eu voltei.
Luciano … eu vou te dar uma aulinha básica de meritocracia, você está na frente de um restaurante com uma caixinha pedindo dinheiro e você está pedindo uma doação e não acontece nada e você não consegue olhar para a cara da pessoa, aquilo é constrangedor e você não consegue porra nenhuma e um belo dia você e seu amigo encontram um jeito de agregar valor para essas pessoas, você monta uma bandinha, começa a tocar e a pessoa para quem você iria pedir, você não precisa pedir mais, porque ela fale pô estou sentada aqui, os caras estão tocando uma música agradável, isso faz bem para mim, esses caras tem mérito, eu vou dar o dinheiro para eles, isso é meritocracia, não tem nada a ver com questão de porque… cara, é o seguinte, você encontrou um jeito de que a pessoa percebeu que você tem um valor e ela vai lá e te retribui esse valor, é só isso meritocracia, entendeu? O resto é tudo cortina de fumaça de socialista querendo meter a boca no capitalismo, é só isso.
Rafael Aí você percebe e isso fica muito evidente quando você vê que na organização eles tentavam dissolver o indivíduo e você vê você fazendo alguma coisa que tenha mais mérito, só que você fica dissolvido no meio de tudo isso, então você não se destaca e você não merece aquilo, então realmente é essa a visão.
Luciano Meu caro, parabéns pelo projeto, eu vou me aproximar, quero ver mais disso, espero que a hora que a gente botar esse programa no ar, mais pessoas pulem no barco aí e vou te botar em contato com os outros que estão se mexendo, lá com o Rony, etc. e tal e com o pessoal da DKT também, eu acho que é legal conversar com essa turma aí, eu espero que dê, parabéns.
Rafael Legal, eu preciso parabenizar você que eu acho que você não tem noção do trabalho que você faz, você é uma voz, que está acompanhando as pessoas durante o dia, eu estou trabalhando, estou te escutando, estou viajando, estou te escutando e a sua voz nem sempre fala o que a gente quer ouvir, então por muitas vezes eu briguei com você mentalmente e parei o seu discurso no meio, mas o importante é que não consegue ficar indiferente ao que você diz, então eu posso não concordar, ou concordo, mas eu não consigo não ter reação ao que você diz.
Luciano Eu sempre digo, não quero que você concorde, só pensa, até para brigar comigo você teve que pensar, então se você acha que eu falei uma idiotice e quer contra argumentar você vai ter que pensar e se você pensar eu ganhei, esse é o ponto, então no final das contas o que interessa é…
Rafael Continua fazendo isso que eu acho que você vai ter noção que você já é imortal, porque a sua voz vai continuar aí por gerações e gerações e continua que você está mudando vidas.
Luciano Obrigado, abração.
Rafael Valeu.
Transcrição: Mari Camargo