Humanidade em meio ao horror

Em minha palestra “Quem não se comunica se trumbica”, trato da importância do contexto para entender as informações que nos chegam. E recentemente recebi um texto de meu amigo Ed Rene Kivitz, que explica de forma dura e crua como o contexto pode alterar completamente uma “verdade”. Usei o texto no podcast Café Brasil 270 – A Complicada Arte de Ver, mas fiquei tão impressionado com a história que decidi ir mais fundo e compartilhar aqui com você. Antes, uma explicação:

Bergen-Belsen foi um campo de concentração nazista na Alemanha. Entre 1943 e o final da II Guerra Mundial, estima-se que 100.000 prisioneiros morreram ali. Quando o campo foi liberado pelo exército britânico, em 15 de abril de 1945, foram encontrados 60 mil prisioneiros, a maioria doentes, além de 13 mil corpos espalhados pelo lugar. Veja trecho do texto que Ed retirou do livro DEUS E SEXO, de Rob Bell, que reproduz parte do diário do tenente-coronel Mercin Willet Gonin, um dos libertadores do campo: 

“Sou incapaz de uma descrição apropriada do circo de horrores em que meus homens e eu haveríamos de passar o mês seguinte da nossa vida. O lugar é um deserto inóspito, desprotegido como um galinheiro. Há cadáveres espalhados por todo lado, alguns em pilhas enormes. Levei algum tempo para me acostumar a ver homens, mulheres e crianças tombarem ao passar por eles. Sabia-se que 500 deles morreriam por dia antes que alguma coisa que estivesse ao nosso alcance fazer causasse algum impacto. Não era fácil ver uma criança morrer sufocada pela difteria quando se sabia que uma traqueostomia e alguns cuidados a teriam salvado. Viam-se mulheres afogadas no próprio vômito porque estavam fracas demais para se virar de lado. Homens comendo vermes agarrados a meio pedaço de pão pelo simples fato de que precisavam comer vermes se quisessem sobreviver. E porque depois de algum tempo, eram incapazes de distinguir uma coisa da outra. (…) Em uma fossa de esgoto boiavam os restos de uma criança. Pouco depois da chegada da Cruz Vermelha britânica, chegou também um grande carregamento de batom. Não era em absoluto o que queríamos, clamávamos por centenas e milhares de outras coisas. Não sei quem pediu batom, mas gostaria muito de descobrir quem fez isso. Foi um golpe de gênio, de habilidade pura e natural. Creio que nada contribuiu mais para aqueles prisioneiros de guerra que o batom. A mulheres se deitaram nas camas sem lençóis e sem camisolas, mas com os lábios escarlates. Podia-se vê-las perambulando por todo lado sem nada, a não ser um cobertor em cima dos ombros, mas com os lábios bem vermelhos. Vi uma mulher morta em cima da mesa de autópsia, cujos dedos ainda agarravam um pedaço de batom. Enfim alguém fizera algo para torná-las humanas de novo. Eram gente, não mais um simples número tatuado no braço. O batom começou a lhes devolver a humanidade, porque, às vezes, a diferença entre o céu e o inferno pode ser um pouco de batom.”

Batom? Num campo de concentração? Pois é… É impossível entender o mundo quando desconhecemos o contexto no qual as verdades se formam.

Luciano Pires

Dá para ter uma idéia do que se passou por lá assistindo as cenas da liberação de Bergen-Belsen no Youtube acessando aqui: http://www.youtube.com/watch?v=89OvMy2z_Mo. Mas já aviso que o vídeo é terrivelmente chocante e perturbador, mas necessário para que essas cenas nunca mais se repitam e os que negam o Holocausto sejam devidamente ignorados.