Corrida pura

Vale a pena assistir ao documentário “Senna”, dirigido por Asif Kapadia, um inglês de ascendência indiana. O roteirista, Manish Pandey, é um indiano apaixonado por Senna e pela Fórmula 1. A produção é toda estrangeira, o que permitiu que o filme escapasse da armadilha do nacionalismo bocó. O que vemos na tela é a opinião de gente que gosta da Fórmula 1 pelo que ela é e não pelo super-herói ser brasileiro, inglês ou francês.

O talento de Senna e sua rivalidade com Alain Prost são a linha central do documentário. As imagens de bastidores, a presença do arrogante Jean-Marie Ballestre, o todo poderoso cartola que conduziu a F1 nos anos 80, e a maneira como as decisões foram manipuladas são dignas de um roteiro de cinema. Por isso os produtores decidiram usar apenas material de arquivo. Para eles, a história real é tão poderosa que não precisa da ajuda da ficção. E acertaram em cheio.

É arrebatador ver a satisfação de Senna comentando sobre seu começo de carreira no kart:

– Era corrida pura. Não havia a pressão do dinheiro e da política.

Essa visão é tão presente que, já consagrado campeão do mundo, ao ser perguntado sobre que piloto ele considerava seu principal rival, Senna cita o inglês Terry Fullerton – piloto de kart, e não o nome que todos esperavam: Prost. Para Senna, Terry foi um dos maiores pilotos de todos os tempos exatamente por correr sem ajuda de dinheiro, computadores e decisões políticas. Corrida pura.

Imagens caseiras mostram um Senna como poucas vezes vimos. Perto de Senna, Schumacher é um robô frio, não um ser humano. Vemos Senna abalado com os acidentes que vitimaram outros pilotos; Senna angustiado com decisões políticas que impedem suas vitórias; revoltado com uma pergunta marota de Jackie Stewart e assim por diante. Dá para sentir o sangue correndo em suas veias.

Senna tinha uma visão diferenciada do negócio no qual estava envolvido, sabia que o que estava fazendo era muito mais que correr. Sabia de sua importância como referência para milhões de pessoas. E usava essa sabedoria com maestria, o que certamente ajudou a construir a imagem do campeão dos campeões, que continua presente em nosso dia a dia quase vinte anos após sua morte.

Evidentemente, eu sabia de tudo que aconteceria no final do documentário, naquele primeiro de maio em Ímola. O mocinho morreria. Mas não consegui parar de me mexer na cadeira, sentindo uma tremenda angústia e frio no estômago conforme o filme mostrava os dois dias de treinos, o acidente com Barrichello, a morte de Roland Ratzenberger e a expressão grave de Senna. Os curtos segundos em que vi as imagens de dentro de seu carro até chegar na curva de Tamburello, onde tudo acabou, parecem horas… Impossível não marejar os olhos.

Mas quer saber o que mais me impactou? Num certo momento surge um paralelo entre o sucesso de Senna e a situação complicada que o Brasil vivia em meados dos anos oitenta. É uma bofetada em quem já se esqueceu de tudo o que passamos nos últimos trinta anos. E em meio às imagens do povo consternado com a morte do piloto, uma brasileira humilde diz:

– A única coisa que nós tínhamos de bom, morreu.

Pois é. Estávamos em 1994. Ela não sabia que o Brasil começava ali.

Luciano Pires