Corrente pra trás

O que vai a seguir é um capítulo de meu livro Brasileiros Pocotó, lançado em 2004. Fica sendo a minha homenagem ao grande Wilson Fittipaldi, que nos deixou hoje. Foi um privilégio conviver com ele, ouvir as histórias e perceber a capacidade de perseguir um sonho de forma obstinada que ele tinha.

Eu ia dizer “descanse em paz”, mas acho melhor dizer: “acelera”!

 

Corrente pra trás.

Participei de uma reunião com Wilson Fittipaldi. Wilson é cativante e não pude resistir em lhe fazer algumas perguntas sobre nossa brasileiríssima equipe Fittipaldi.

Quando o Copersucar estreou, em 1973, eu tinha 17 anos. E quando parou, em 1982, eu tinha 25. Foram os áureos anos da Fórmula 1 romântica e, pelo menos na minha cabeça, o que ficou foi a imagem do carro brasileiro que quebrava, quebrava, e não chegava…

Wilsinho foi enfático em afirmar que o problema daquele sonho brasileiro foi muito mais de credibilidade do que qualquer outra coisa. A falta de visão da mídia brasileira, de pessoas que conhecessem os meandros da F1, acabou criando uma imagem de equipe fracassada, contaminando os possíveis patrocinadores. Ninguém deu moleza para uma equipe de perdedores e deu no que deu. “Aquela porcaria só quebrava…”

Fiquei curioso e fui fazer um levantamento para verificar os fatos. Olha o que descobri:

Em oito temporadas, a equipe Fittipaldi acumulou 44 pontos, sendo um segundo lugar, dois terceiros lugares, cinco quartos lugares, quatro quintos lugares e sete sextos lugares. Enquanto isso, a Williams, atual potência da categoria, marcou apenas 21 pontos em seis temporadas (1973-78), antes da chegada do patrocínio milionário dos árabes em 1979.

A Fittipaldi terminou o Mundial de Construtores de 1978 com 17 pontos, à frente da McLaren, Williams, Renault e Arrows. E o Mundial de Construtores de 1980 com 11 pontos, à frente da Ferrari e Alfa Romeo e empatada com McLaren e Arrows.

Emerson terminou o campeonato de estréia pela equipe, em 1976, empatado com Carlos Reutemann (Brabham – Alfa Romeo) com três pontos. O campeonato de 1978, empatado com Gilles Villeneuve, da Ferrari, com 17 pontos (9º na geral) e à frente de pilotos da Williams, Renault, McLaren e Tyrrel. O campeonato de 1980, na mesma colocação que Alain Prost, da McLaren, com cinco pontos (15º na geral) e à frente de pilotos como Mario Andretti, da Lotus.

A equipe Fittipaldi foi formada por profissionais como Emerson Fittipaldi, duas vezes campeão mundial de Fórmula 1, duas vezes vice; Keke Rosberg, que trocou a Fittipaldi pela Williams, em 1982, e foi campeão do mundo; Jo Ramirez, chefe de equipe, considerado por Senna o melhor de todos; Ricardo Divila, projetista, já conquistou mais de vinte títulos no automobilismo mundial; Adrian Newey, projetista em 1979 e 1980, faturou os mundiais de 92, 93, 96 e 97; Harvey Postlethwaite, projetista em 1980 e 1981, na Ferrari, conquistou o Mundial de Construtores de 1982.

A equipe Fittipaldi acumulou um índice de quebras ao longo de sua história de 33,3%. Enquanto isso, a Jordan teve 44,5%, a Sauber 44,4%, a Williams 35% e a Ferrari 34,5%.

Você conhecia esses dados? Acho que não…

Pô, meu, talvez a memória que eu tenho do Copersucar seja injusta… Talvez o Wilsinho não esteja com dor de cotovelo.

E ele dizia:

— Ninguém nos conhecia, o que sabiam era o que saía na mídia. E quando nós mais precisávamos, quem é que ia querer fazer negócio com gente que era motivo de piada? Pô!

No capítulo “Eu, burro” deste livro, trato exatamente dessa espécie de morbidez do brasileiro que teima em não dar valor às conquistas de seus conterrâneos. Como exemplo, eu citava a conquista do Campeonato Mundial de Rally Cross Country pela equipe DanaTroller em 2001. Uma conquista que não teve repercussão fora do círculo dos amantes de ralis e que foi ridicularizada por algumas pessoas que não admitiam um carro fabricado no Brasil sendo comparado às máquinas das grandes montadoras.

No caso do Copersucar, a situação era bem diferente. O que não faltou foi mídia e divulgação, o que acabou criando uma expectativa sem precedentes. E, se existe uma coisa que brasileiro não perdoa, é expectativa frustrada. Por isso achamos que vicecampeonato é derrota.

Fico imaginando como é que se forma essa “corrente pra trás” que acaba criando uma torcida contra os conterrâneos que estão tentando alcançar seus objetivos. Uma hora é porque são incompetentes mesmo, outra é porque são preguiçosos. Aí, é porque ganham muito dinheiro ou, então, porque são medrosos…

Retomando a conversa com o Wilsinho, como é que essa percepção de incompetência, preguiça e medo é formada na opinião pública? Pensem bem… Que demonstrações públicas, inequívocas, evidentes, de medo, covardia, incompetência ou preguiça vocês já viram, ao vivo e em cores, dos nossos conterrâneos ao enfrentarem adversidades nas competições esportivas contra gente de maior gabarito?

Aposto que o choro da derrota, o suor do esforço, a explosão de ira em busca da vitória, o sangue do excesso ou as lágrimas do sucesso de brasileiros vocês já cansaram de ver. E essas demonstrações são de quê?

Será que os Fittipaldi choraram? Suaram? Sangraram? Ficaram irados? Fizeram tudo pela vitória? Ou terão tido medo? Incompetência? Preguiça? Dinheiro em excesso?

Por que viraram piada? Por que ficaram com a imagem de perdedores com o Copersucar? Porque alguém contou que eles eram motivo de piada. Alguém rotulou a equipe Fittipaldi de fraca, incompetente, perdedora. Do mesmo modo como nunca rotulam nossos adversários como mais fortes, poderosos e competentes!

Brasileiro perde porque é fraco, nunca porque o adversário é mais forte.

O Popó, campeão mundial de boxe, passou longos períodos procurando patrocinador. A Danielle Hipólito, vicecampeã mundial, idem. O que eles pediam por ano é mais ou menos um salário mensal de um jogador badalado de um grande time brasileiro de futebol.

O que eles não tinham é credibilidade.

A mesma máquina que nos convenceu de que o futebol brasileiro é campeão do mundo e que valorizou jogadores em escala global, permanece tímida diante dos talentos que têm tudo, menos credibilidade. E, agindo assim, não lhes dá a chance de construir a mesma reputação que, a despeito das falcatruas, tem o futebol. Assim fica impossível sedimentar uma estrutura capaz de continuar gerando campeões.

Ah, se o Popó ou a Danielle fossem ingleses, franceses, russos, alemães, argentinos…

Olha, Wilsinho, se você um dia ler este texto, saiba que eu mudei. Procurei conhecer os fatos e hoje tenho orgulho do Copersucar.

Orgulho de ter deixado a ignorância de lado.