Bom dia, boa tarde, boa noite. Olha só, a música popular brasileira tem uma riqueza inigualável. Entra pela alma da gente, ferve o sangue, agita as pernas… é uma loucura! Pois decidi que hoje o programa será mais uma homenagem à cultura do nordeste na figura de uma de seus ícones: Antonio Gonçalves da Silva. Quem é? É famoso Patativa do Assaré.
Para abrir o programa, uma frase dele:
É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada…
[tec] melo do pocotó [/tec]
Antônio Gonçalves da Silva, dito Patativa do Assaré, nasceu a 5 de março de 1909 na Serra de Santana, pequena propriedade rural, no município de Assaré, no Sul do Ceará. Tem inúmeros folhetos de cordel e poemas publicados em revistas e jornais. Patativa do Assaré era unanimidade no papel de poeta mais popular do Brasil. Para chegar onde chegou, tinha uma receita prosaica: dizia que para ser poeta não era preciso ser professor. ‘Basta, no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do seu sertão’. Patativa do Assaré é poeta do nordeste. E aqui você vai ouvi-lo recitando sua primeira poesia O POETA DA ROÇA. Ao fundo teremos VACA ESTRELA E BOI FUBÁ, com Di Freitas…
[tec] vaca estrela e boi fubá di freitas[/tec]
[tec] o poeta da roça[/tec]
[tec] canta patativa [/tec]
Olha só… você ouve Dominguinhos e José Fábio. Aliás, José Fábio tem uma história incrível: muito criança começou a cantar fazendo imitações de Edson Cordeiro. Convidado a morar um sítio próximo de Assaré, por uma mulher que o colocou para cantar em troca de dinheiro, José Fábio fugiu aos sete anos de idade. Perambulou pelo norte e nordeste até retornar para a cidade de Assaré. Numa praça, conheceu Patativa do Assaré que o incentivou a continuar na carreira como cantor. José Fábio gravou em 1999 um CD totalmente dedicado às músicas de Patativa. É dele que retirei parte do que você ouve neste podcast…
[tec] vinheta [/tec]
[tec] retorna vaca estrela e boi fubá [/tec]
Pois então… Patativa do Assaré cresceu ouvindo histórias, os ponteios da viola e folhetos de cordel. Em pouco tempo, a fama de menino violeiro se espalhou. Com oito anos trocou uma ovelha do pai por uma viola. Dez anos depois, viajou para o Pará e enfrentou muita peleja com cantadores. Quando voltou, estava consagrado: era o Patativa do Assaré. Nessa época os poetas populares vicejavam e muitos eram chamados de ‘patativas’ porque viviam cantando versos. Ele era apenas um deles. Para ser melhor identificado, adotou o nome de sua cidade: Assaré.
Filho de pequenos proprietários rurais, Patativa inspirou músicos da velha e da nova geração e rendeu livros, biografias, estudos em universidades estrangeiras e peças de teatro. Também pudera. Ninguém soube tão bem cantar em verso e prosa os contrastes do sertão nordestino e a beleza de sua natureza. Talvez por isso, Patativa ainda influencie a arte feita hoje. Como todo bom sertanejo, Patativa começou a trabalhar duro na enxada ainda menino, mesmo tendo perdido um olho aos 4 anos. No livro ‘Cante lá que eu canto cá’, o poeta dizia que no sertão enfrentava a fome, a dor e a miséria, e que para ‘ser poeta de vera é preciso ter sofrimento’.
[tec] sobe [/tec]
Patativa só passou seis meses na escola. Isso não o impediu de ser Doutor Honoris Causa de pelo menos três universidades. Não teve estudo, mas discutia com maestria a arte de versejar. Desde os 91 anos de idade com a saúde abalada por uma queda e a memória começando a faltar, Patativa dizia que não escrevia mais porque, ao longo de sua vida, ‘já disse tudo que tinha de dizer’. Patativa morreu em 08 de julho de 2002 na cidade que lhe emprestava o nome.
É de Patativa do Assaré o poema SAUDADE, que você ouvirá ao som da intordução de SEXTILHAS, de Otacílio Batista e Oliveira de Panelas
[tec] sextilhas [/tec]
Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.
Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.
Saudade é um aperreio
Pra quem na vida gozou,
É um grande saco cheio
Daquilo que já passou.
Saudade é canto magoado
No coração de quem sente
É como a voz do passado
Ecoando no presente.
A saudade é jardineira
Que planta em peito qualquer
Quando ela planta cegueira
No coração da mulher,
Fica tal qual a frieira
Quanto mais coça mais quer.
[tec] vaca estrela e boi fubá – pena [/tec]
Que tal? Pena Branca e Xavantinho com a Vaca Estrela e o Boi Fubá, uma das músicas mais gravadas de Patativa do Assaré…
O norte e o nordeste do Brasil são pródigos em poetas. Existe uma rede de influências por lá que é maravilhosa. Poetas brotam por toda parte, como as plantas que teimam de crescer no sertão. Quer ver? Ismar Barreto Dória, por exemplo, que nasceu em Aracajú em 1953, inciando-se na música em 1967 em Brasília. Desde 1970 participou de festivais e tem um trabalho bem humorado, satírico, com crônicas do cotidiano e de cunho social. Infelizmente Ismar faleceu em 2006, mas é possível perceber que em sua obra tem pitadas de Patativa, não é? Ouça seu poema, Salada Tupiniquin, que coloca o Brasil no cenário globalizado com um humor impagável. E já que o assunto é o Brasil globalizado, que tal Ivan Vilela com WHILE MY GUITAR GENTLE WEEPS de George Harrisson na viola caipira? Fala a verdade…onde mais você ouve algo assim?
[tec] while my guitar… [/tec]
A gente só quer amar este país
A gente só pode amar este país
Esse povo merece ser feliz
Esse povo só deve ser feliz
Quando Pero Vaz de Caminha Escreveu
Que aqui plantando tudo dá
Na Europa muita gente até deu
Vontade de se mudar pra cá
Pra ver Santos Dumont voar de Concord
Pixuinguinha ensinar Beethoven a tocar
Frank Sinatra aprender com Zé Limeira
A maneira mais certa de cantar
Lampião dar carreira em Schwazzenegger
Nas caatingas do sertão do Ceará
E quem veio de lá pode ver
A Madonna dançando chen-nhen-nhen
Rolling Stones garçon em Olinda
Michael Jackson na Febem de Belém
Príncipe Charles catando caranguejo
Lady Di descascando Aratu
Gorbachev enfermeiro em João Pessoa
Mike Tyson porteiro do Olodum
Maradona chofer em Maceió
E o Rambo gari em Aracaju
Não é o máximo? Pois nas mãos de Eliezer Setton, virou música…
[tec] SALADA TUPINIQUIM [/tec]
Você ouve “Salada Tupiniquim” a poesia nordestina de Ismar Barreto com a música nordestina do grande Eliezer Setton que tem um ranchinho aqui no Café Brasil…
[tec] vaca estrela e boi fubá – trio carapiá [/tec]
Pois então.. Patativa era um crítico social. Colocava em poesia o clamor dos nordestinos. Ouça só esta poesia, chamada NORDESTINO SIm, NORDESTINADO NÃO. É uma porrada… ao fundo temos outra vez VACA ESTRELA E BOI FUBÁ, mas desta vez com delicioso o Trio Carapiá.
[tec] vaca estrela [/tec]
Nunca diga nordestino
Que Deus lhe deu um destino
Causador do padecer
Nunca diga que é o pecado
Que lhe deixa fracassado
Sem condições de viver
Não guarde no pensamento
Que estamos no sofrimento
É pagando o que devemos
A Providência Divina
Não nos deu a triste sina
De sofrer o que sofremos
Deus o autor da criação
Nos dotou com a razão
Bem livres de preconceitos
Mas os ingratos da terra
Com opressão e com guerra
Negam os nossos direitos
Não é Deus quem nos castiga
Nem é a seca que obriga
Sofrermos dura sentença
Não somos nordestinados
Nós somos injustiçados
Tratados com indiferença
Sofremos em nossa vida
Uma batalha renhida
Do irmão contra o irmão
Nós somos injustiçados
Nordestinos explorados
Mas nordestinados não
Há muita gente que chora
Vagando de estrada afora
Sem terra, sem lar, sem pão
Crianças esfarrapadas
Famintas, escaveiradas
Morrendo de inanição
Sofre o neto, o filho e o pai
Para onde o pobre vai
Sempre encontra o mesmo mal
Esta miséria campeia
Desde a cidade à aldeia
Do Sertão à capital
Aqueles pobres mendigos
Vão à procura de abrigos
Cheios de necessidade
Nesta miséria tamanha
Se acabam na terra estranha
Sofrendo fome e saudade
Mas não é o Pai Celeste
Que faz sair do Nordeste
Legiões de retirantes
Os grandes martírios seus
Não é permissão de Deus
É culpa dos governantes
Já sabemos muito bem
De onde nasce e de onde vem
A raiz do grande mal
Vem da situação crítica
Desigualdade política
Econômica e social
Somente a fraternidade
Nos traz a felicidade
Precisamos dar as mãos
Para que vaidade e orgulho
Guerra, questão e barulho
Dos irmãos contra os irmãos
Jesus Cristo, o Salvador
Pregou a paz e o amor
Na santa doutrina sua
O direito do bangueiro
É o direito do trapeiro
Que apanha os trapos na rua
Uma vez que o conformismo
Faz crescer o egoísmo
E a injustiça aumentar
Em favor do bem comum
É dever de cada um
Pelos direitos lutar
Por isso vamos lutar
Nós vamos reivindicar
O direito e a liberdade
Procurando em cada irmão
Justiça, paz e união
Amor e fraternidade
Somente o amor é capaz
E dentro de um país faz
Um só povo bem unido
Um povo que gozará
Porque assim já não há
Opressor nem oprimido
[tec] viva o povo brasileiro [/tec]
Pois então, viva o povo brasileiro! É assim, ao som de Patativa do Assaré que o Café Brasil que homenageou a cultura nordestina na figura de um de seus maiores expoentes, vai embora.
Patativa do Assaré era um artista. Uma daquelas dádivas misteriosas da natureza. Sua obra representa o saber popular e rivaliza tanto no conteúdo como na estética com as obras dos grandes nomes da cultura brasileira. Experimente buscar suas poesias. Você vai se emocionar…
Estiveram conosco hoje, olha só: Patativa do Assaré, Di Freitas, José Fábio, Trio Carapiá,m Ptacílio Batista e Oliveira das Panelas, Eliezer Setton, Pereira da viola…
Na técnica está o Lalá Moreira. Na produção a Ciça Camargo. E na direção e apresentação eu: Luciano Pires.
Quer mais? Visite www.lucianopires.com.br.
E pra terminar, claro. Um versinho dele… Patativa do Assaré:
Meus versos é como semente
Que nasce arriba do chão
Não tenho estudo nem arte
A minha rima faz parte
Das obras da criação